O Perdão Para Quem Nunca Errou – Jeane Meire

A leitura inicia como um coração que começa a bater naquele momento. Abrem-se os olhos e “Contempla!”. O leitor é inserido em um organismo. E quando Ulisses e Helena se entregam parece que ali geram um filho. O livro.

O ser vivo ganha corpo nas histórias de Marco. Um estilo épico do heroico, sem o herói. Assim como as aventuras de Ulisses, ou de Polo, Marco, um nome italiano, também tem sua história narrada através das maravilhas de Veneza, Solária e Cálida. As duas últimas, cidades fictícias.

Logo que se fez a vida, faz-se a morte. A narrativa não segue a estrutura aristotélica do início meio e fim. A cronologia dos atos é feita pelo interlocutor que começa a montar um quebra-cabeça das lembranças do nosso protagonista. Personagem extraordinário, o cardiologista sonha, ou sonhou, em ser o melhor médico do mundo. Seria esse o obstáculo principal do roteiro a ser enfrentado pelo nosso doutor?!

A escrita muda de ritmo, alternando entre grandes parágrafos, destinados para descrever ambientes e situar o leitor, e pouquíssimas palavras nos diálogos para criar uma atmosfera de mesa cirúrgica. Além de uma atenção peculiar ao descrever cores e texturas. O leitor consegue pintar um quadro na mente ao fechar os olhos. O livro gera uma expectativa dupla, prepara o leitor para o erro, justificando uma das principais características do ser humano. Mas o nosso protagonista é preparado para não errar em uma mesa de cirurgia. Teria ele a mesma aptidão no amor!?

A obra que traz um humor leve não foge do romance, e apesar desses conflitos espirituais, Marco ama. A história segue então descrevendo a relação do cardiologista com a dermatologista Lara, o momento em que se conheceram, na faculdade, longe de Cálida. As férias na cidade praiana de Solária. A criação dos filhos, Pedro e Vitória.

O cotidiano do cardiologista é agitado. A relação paciente e medico é explorada no início do livro e alguns questionamentos são levantados. Conflitos e paradigmas de dentro da medicina, sobre a frieza de/do ser médico, e do amor à profissão e ao servir. A obra levanta questões do ímpeto humano, o íntimo, o ínfimo da alma. Traz valores religiosos, morais, familiares e sociais. Ao mesmo tempo em que critica o momento atual e a frieza das relações, com a distância e as novas tecnologias, apresenta um protagonista em conflito consigo mesmo.

Algo dentro de Marco aparece para ameaçar a família. Algo pequeno, como uma aranha que surge na sala da casa, à noite, enquanto todos dormem. E Marco não soube matar este sentimento tão bem quanto consegue manejar o álcool para subjugar o inseto. Momento na trama em que o fogo aparece pela primeira vez.

O anti-herói pode gerar identificação com médicos ou pessoas que tiveram uma a ascensão parecida, mas pessoas que erram ou erraram na vida dos filhos, dos amores ou consigo mesmas também poderão se identificar. Lara representa uma parcela de mulheres. Vitória, sua filha, representa o julgamento, e Pedro, o filho mais novo, seria a pedra, o perdão, aqueles que perdoam.

Marco se muda para Veneza tentando fugir das memórias. Em um espetáculo da Companhia Escarcéu de teatro, em Mossoró, a cigana Romani grita “o passado só serve para perturbar espírito.” E é em forma de Cigana que o passado de Marco se personifica. E o segue até as ruas da Itália.

Cálida poderia ser Mossoró – significa calor, quentura –  Solária poderia ser uma Tibau, cidade cheia no verão, com festas até amanhecer e marchinhas de carnaval  e arlequins de fevereiro que perturbam o sono de quem dorme na varanda, seja sonho ou não.

Fica a curiosidade do que acontece com os outros amigos de Marco durante a vida. Talvez seja proposital. Por mais que haja uma relação de intimidade com os pacientes, Marco não demonstrou se importar ao deixar de visitar uma senhora que o considerava como filho.  Mas ajuda a uma prostituta com quem nunca teve relação carnal. A história inacabada dos outros ou da relação do personagem com eles desperta um interesse, mas nada que nos impeça de viver por causa dessas questões não elucidadas.

A inquietação do destino de Antônio ou de Ana, amigos de faculdade que desaparecem, sem justificativa, da vida de Marco, vai me acompanhar por menos tempo do que o próprio destino esmiuçado do protagonista. Subentendo que a relação sofreu desgastes, assim como, e talvez pelo mesmo motivo, o relacionamento com os filhos, mais com Vitória.

A frase “somente os bons se vão em dias de chuva” entra em contraste com o fogo, mas ambos os elementos podem purificar uma alma tão perturbada pelos próprios pensamentos e fantasmas. Apoteose, por absolvição dos pecados, ou punição!? No fim, sem spoiler, Marco se encontra com Pedro, na Basílica. Encontro ilustrado na capa do livro Água de Chloé. Resta saber se seus pecados são purificados, seja através das águas da chuva, das lágrimas dele e do filho ou pelo calor de suas lembranças.

Eu li Água de Chloé, de João Paulo de Medeiros, através dos elementos que o livro me dá. Mas assim como Lara e Marco na brincadeira de adivinhar a vida das pessoas a quem observavam, eu não tenho a menor pretensão de saber se acertei. Gosto de imaginar que algumas cenas são lembranças do autor da infância, adolescência, vida vivida. Gosto de imaginar, mas nunca saber de verdade.

Se colocássemos um monitor cárdico enquanto lemos o livro talvez pudéssemos perceber o ritmo dos nossos batimentos acompanhando os momentos de inércia e contemplação com os momentos de angústia e tensão. A música que toca começa lenta, mas os bips aceleram em alguns momentos. A escrita nos proporciona isso. João Paulo de Medeiros, como bom cardiologista que é, consegue controlar bem a pulsão do seu leitor.

O Escritor

 

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João Paulo é formado em medicina Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com residência médica em São Paulo. Especialista em Clínica Médica, Cardiologia e é professor do curso de Medicina da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (FACS/UERN). Atua no Instituto Wilson Rosado. Publicou um livro de ensaios em 2016, Impressão, Índigo, uma coletânea de poemas em 2018, Púrpura e agora lança o romance Água de Chloé.

O Lançamento

Dia 01/11. Às 19h.Na XV Feira do Livro Mossoró – Livraria Arte e Saber – Partage Shopping Mossoró.