O jogo do bicho – Geraldo Maia

É uma bolsa ilegal de apostas que apesar de proibida é praticada diariamente em todo Brasil, das capitais às pequenas povoações. É invencível. Está, como dizem os viciados no jogo, na massa do sangue.
O jogo do bicho nasceu no Rio de Janeiro 1893 quando o Barão de Drummond, titular do Império, fundador e proprietário do Jardim Zoológico, tendo cortada a subvenção federal que auxiliava na manutenção dos animais, aceitou a sugestão de um mexicano, Manuel Ismael Zevada, e inaugurou o jogo do bicho no Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A princípio, funcionava assim: comprando um ingresso de mil réis para o Zoo, ganhava-se iam vinte mil réis, se coincidisse o a animal desenhado no bilhete ser o mesmo que seria exibido num quadro, determinadas horas depois. O Barão de Drummond fizera pintar vinte e cinco quadros com figuras de animais, e cada tarde um quadro subia, mostrando o bicho vitorioso. Os ingressos que tivessem o animal desenhado davam direito aos vinte mil réis. O jogo agradou tanto que uma multidão passou a frequentar o Zoológico exclusivamente para comprar os bilhetes e esperar a sorte. Espalhou-se pelo povo tornando-se hábito. Anos depois, o Barão não mais possuía o monopólio, e mesmo proibindo o jogo no Zoológico, centenas de banqueiros vendiam as “poules” com os números referentes aos vinte e cinco bichos dadivosos. Dessa maneira o jogo do bicho derramou-se por todo território nacional. Os vinte e cinco bichos escolhidos foram: 1, Avestruz; 2, Águia; 3, Burro; 4, Borboleta; 5, Cachorro; 6, Cabra; 7, Carneiro; 8, Camelo; 9, Cobra; 10, Coelho; 11, Cavalo; 12, Elefante; 13, Galo; 14, Gato; 15, Jacaré; 16, Leão; 17, Macaco; 18, Porco; 19, Pavão; 20, Peru; 21, Touro; 22, Tigre; 23, Urso; 24, Veado e 25, Vaca.
O mais interessante, na sua prática, é como acontecem as apostas. Para jogar no bicho, os participantes escolhem um par de dezenas ou um par de animais (cada animal equivale a uma dezena). É comum também a sugestão de apostas relacionadas a tipos de sonhos. Para cada tipo de sonho há um animal e algumas dezenas indicadas. E aí entra a parte folclórica da história. O escritor Raimundo Nonato, em seu livro “Visões e Abusões Nordestinas” (Edição do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – 1977), nos relata um curioso método de decifração de sonhos que era usado por essa região. Segundo seu levantamento, quem sonhava com doutor, jogava no burro; ver defunto, é só jogar no urso; sonhar com água, joga no jacaré, na cobra ou no porco; sonhar com moça dá borboleta; com coco é galo (decifração complicada porque coco dá quenga, quenga é galinha que é a fêmea do galo); também quem sonha com ovo tem palpite para galo; ver a lua em sonho é cavalo (devido ao cavalo de São Jorge); sonhar viajando em trem de ferro dá elefante; sonhar com lama é porco; com carne verde é tigre; com Presidente da República ou Rei é leão; com vestido encarnado é touro; com leite é vaca; com festa é peru; com farmácia é cobra; com velha é avestruz; com algodão é carneiro; com menino é coelho; com vestido fantasiado é pavão. Mas há outras decifrações mais complicadas como a que Raimundo Nonato retrata em seu livro:
“A vizinha grita para a outra:
– Comadre, eu sonhei com machado. Que bicho dará:
A intérprete responde:
– Mulher o machado tinha cabo?
– Tinha sim, responde a outra.
– Pois então machado com cabo é número 7. Jogue no carneiro.
Mas a coisa não fica só nisso. Existe uma forma especial para sonhar com o bicho do dia seguinte que é dormir amarrado, deixando um feixe de capim debaixo da rede, ou da cama. Há ainda uma oração poderosa para sonhar com o bicho, jogar e acertar, como nos ensina Luís da Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro (12ª edição – Global Editora 2012):
“Valei-me, minhas Santas Almas Benditas, as três que morreram queimadas, as três que morreram afogadas, as três que ficaram perdidas.
E venham todas as nove que me digam em sonho claro, que bicho dará amanhã.
Minhas Santas Almas Benditas, juntem-se todas as três, as seis, as nove e com poderes de Deus e de sua Santa Mãe, dai-me em sonho claro o bicho de amanhã sem confusão e sem embaraço. Rezar três Salve Rainha, até nos mostrar”.
Cascudo registra que colheu essa oração em Natal num catimbó. Mas é impossível reunir todos os processos populares para acertar no bicho, a variedade interpretadora dos sonhos, visões e intuições que vão do maravilhoso ao cômico. O encontro com animais, a sombra de objetos, notícias, nomes, pessoas, tudo serve para indicar o bicho que há de dar. Há gente que lança água em uma parede para deduzir da mancha o aspecto provável de um animal. As manchas da saliva ou da urina guiam também. Borra de café e muitas outras artimanhas são usadas na tentativa de se adivinhar o bicho que vai dar naquele dia.
Visitando uns primos em Jardim do Seridó/RN, onde nasceu o meu pai, tive o seguinte diálogo com um deles:
– Meu primo, qual o seu ganha pão atualmente?
– Estou vendendo o que não tenho, respondeu ele.
E eu muito espantado perguntei?
– O que é isso, primo, está enganando o povo?
– Não, meu primo, respondeu ele. Estou vendendo jogo de bicho. Vendo vaca, cavalo, carneiro e não tenho nada disso.
Apesar da prática ser ilegal, segundo as leis brasileiras, há diversos tipos de interpretações separadas sobre o jogo, como por exemplo, o ato de jogar, como consumidor, e o ato de explorar o jogo do bicho, como bicheiro. A exploração do jogo é considerada prática de jogo de azar. Isso quer dizer que é uma infração penal, na lei brasileira. Mais precisamente, configura uma infração do tipo “contravenção penal”. O ato de apostar, no entanto, não é ilegal, sob as mais variadas perspectivas. Isso quer dizer que o apostador não sofre nenhum tipo de punição, e pode usufruir de seus ganhos. A única condição para isso, é que declare os ganhos em seu imposto de renda, tornando-os lícitos.
Legalizada ou não o jogo do bicho segue o seu caminhar de cento e vinte e quatro anos de história, alimentando sonhos e despertando curiosidades, inclusive deste pesquisador que resolveu escrever sobre o assunto.