O fantasma de Lombroso 

Por Gilberto Alvarez Giusepone Jr. (*)

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Na década de 1930, o Brasil consolidou um modo singular de abordar a criança pobre, especialmente o chamado “menor infrator”. Essa expressão “menor infrator” havia sido cunhada alguns anos antes. O Código de Menores que tinha sido promulgado em 1926 e regulamentado em 1927 lhe deu substância jurídica.
Quando foi promulgado, alguns médicos na cidade de São Paulo escreveram que já existiam métodos suficientes para prevenir a criminalidade.

No mesmo contexto o Instituto de Biologia Infantil produzia seus primeiros estudos no Rio de Janeiro e seu idealizador, o Dr. Leonidio Ribeiro, também apresentava ao governo carioca o projeto “Cidade dos Menores”, de assumida inspiração fascista.

Entre 1920 e 1945 a Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo respondeu pela formulação de inúmeras estratégias visando subsidiar os governantes com medidas preventivas que pudessem identificar, a priori, a disponibilidade da pessoa ao alcoolismo, à homossexualidade e ao crime.

O que esses fatos, instituições e personagens tinham em comum era a busca de critérios considerados científicos para detectar tendências e propensões.

A esses exemplos, poderiam ser acrescentados muitos outros.

O Brasil foi um dos países que, no início do século 20, mais se apropriou, usou e disseminou os fundamentos da criminologia de Cesare Lombroso (1835-1909), pesquisador que deu origem ao conceito de propensão tal como utilizado pelas escolas jurídicas que passaram a citar “diretrizes jurídicas e psiquiátricas necessárias” para prevenir tendências a comportamentos antissociais.

Em 1939, quando Arthur Ramos criticou o uso dos conceitos de normalidade e anormalidade para descrever alunos das escolas públicas com histórico de mais de uma repetência, elaborou o conceito de “criança problema” justamente para fazer um contraponto à noção de “criança propensa” que era fartamente utilizada por dirigentes educacionais que buscavam inspiração no repertório lombrosiano para identificar “alunos com tendências duvidosas”.

A obra de Lombroso caiu em descrédito, mas a busca por traços corporais e dados antropométricos que possam explicar o comportamento não cessa de encontrar adeptos entusiasmados.

Essa busca se sofisticou e tem, recentemente, reaparecido com os recursos da chamada “inteligência artificial” para capturar os traços que possam registrar alunos suscetíveis. Suscetíveis a quê?
O espectro da suscetibilidade é amplo.

Tenta-se “prevenir” desde a evasão escolar, até reações violentas.

Nada menos que a Universidade de Stanford validou um programa que faz o “escaneamento” dos traços da face para indicar a tendência à homossexualidade.

Se a obra de Lombroso, matriz das técnicas de mensuração e da base conceitual da propensão, caiu em desuso e descrédito, a inspiração fascista de recolher nas medidas do corpo e nos traços da face as regularidades indicadoras de propensões está mais viva que nunca.

Causa perplexidade a reedição constante dos fundamentos do biodeterminismo no atual contexto. Isso se dá com o enorme aparato tecnológico e está no cardápio de serviços de grandes corporações. Um exemplo lamentável pode ser indicado na abertura do governo de São Paulo aos produtos da Microsoft para detectar “propensos à evasão”.

Quantas obras não foram escritas para expor o quão aberrante era a intenção de “medir” para detectar traços de alcoolismo, de homossexualidade, de violência entre jovens, na década de 1930?

E o que devemos afirmar agora, em 2017, observando a volta sofisticada dos mesmos pressupostos? Por que a Universidade de Stanford se interessa em “medir o grau de homossexualidade”?

Por que a Microsoft “vende” um produto que detecta propensos, baseando-se em perfis biométricos e na vigilância de atitudes que são previamente ranqueadas como se fossem indicadores do que pessoa traz como tendência?

Temos uma pedagogia da câmera vigilante que proporcionará estatísticas do tipo: 45% dos que evadiram repetiram tais gestos, tais modos, tais comportamentos etc.

Tudo isso está acontecendo porque o fascismo demonstra estar vivo, presente e atuante?
Perdemos mesmo todos os escrúpulos?

O que se passa?

(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber