O Fantasma de Licânia (Parte XXII) – Clauder Arcanjo

Para você

(porque você sempre acreditou na existência do fantasma)

 

No sétimo dia, sem mais nem menos, Companheiro Acácio recebeu a colheita dos diversos trabalhos investigativos. Sim, os legionários da SYL estavam de volta. Em grupos de três, retornando das missões específicas, foram se achegando e ofertando suas descobertas, com explicações detalhadas.

O primeiro grupo, aquele que se enfiou por entre as matas e cipós das ribeiras do rio Acaraú, achegou-se em passos lentos; com os ombros caídos pelo cansaço da busca. Os três estavam marcados, além do risco dos espinhos nas peles tostadas pelo sol teimoso, por um olhar de espanto. O mais velho deles, quase ajoelhado, depôs um cajado sobre a calçada da pensão do Raul e coçou o queixo, antes de proferir algumas palavras:

— Não seremos tolos em dizer que foi muito o que nós achamos. O céu amigo e as águas frias do Acaraú não nos deixariam mentir. Entramos há uma semana por entre as terras dos ribeirinhos, com a missão de descobrirmos alguns sinais da presença do Fantasma de Licânia. Pois bem, Companheiro, vimos a florada do mandacaru troçar da força da estiagem, o canário da terra saudar o arremate sereno da tarde, a seriema se espreguiçar, faceira, na poça de lama, o caburé se orgulhar da sua visada de arregalo na madrugada escura, o preá desfilar na boca do fojo em compasso de troça, o sertanejo mourejar, diuturnamente, armado tão só de esperança e de teimosia; mas, do fantasma, nem sinal, nem indício sequer da sua carpintaria. Assim depomos as armas, e voltamos ao nosso humilde posto. Temos dito.

— Vão, descansem, e estejam sempre prontos. Se ele houvesse ousado se esconder na mataria, vocês colheriam dele alguma evidência, com certeza — arrematou Acácio, sentado, altivo, no tamborete ao canto da calçada.

Com pouco, o outro grupo. Pelo andar e pelo resfolegar libidinoso das narinas acesas, eles davam claramente o mote da sua missão.

— Já nosso pastorear se deu onde os homens desta terra mais encontram o prazer. Por lá, nós achamos o choro do menino escondido na courama de velhos senhores, o depoimento do rapagão azougado que conheceu, pela primeira vez, a força bruta das próprias carnes, o reclamar de casados abandonados pelas próprias esposas, sem coito farto no arremedo de lar. O Caneco Amassado, chefe Acácio, compõe e mantem a paz nessas cercanias, é motivo mais de sossego e júbilo do que de contestação pelas mancebias. No que tange ao nosso intuito, as meninas moças de lá não nos deixariam mentir, lá não há fantasmas. A coisa mais próxima que surgiu foi o desespero de uma velha dama que lá despontou, há três anos, a procurar por seu companheiro-amante. Ela chorava feito bezerra desmamada, e rogava a todas elas que, caso o vissem, dissessem que ela o amava mais do que tudo. Souberam depois que ele cometera suicídio, ao suspeitar que a velha companheira se enamorara por um jagunço de outras estrebarias. Rezam por ela todas as noites, um terço e um rosário de carreirinha. Onde ela se encontra hoje? É noiva do Senhor, virou freira, segundo depoimento da gerente do lugar.

— Grato, procurem repousar. E sempre prontos, nunca esqueçam. Se o Caneco Amassado não foi o coiteiro do nosso fantasma, paciência, tiramos, agora, tudo isso a limpo — concluiu Acácio Holmes, um pouco mais espigado do que de costume.

O quarto trio, de tanto acompanhar o dia a dia do Mercado Público, cheirava a frutas e especiarias. Sem esperar, eles despejaram um cesto de descobertas no colo do nosso Holmes das Ribeiras de Licânia:

— Os feirantes só nos deram sinais de fartura. Entre talhadas de melancias, chupadas fartas de cajus, mangas, gomos de graviolas, sem mencionar as copadas de suco de peroba, só se ouvia a certeza de que o caso do Fantasma de Licânia está nas mãos certas. Confiam em nosso tirocínio, e nunca os vi tão crédulos, senhor. Nada escapou de suas línguas, tão treinadas no labor do prosear farto e engenhoso. Desta feita, foi tudo em vão. Nada nos disseram, nada nos confidenciaram. Apenas nos desejaram boa sorte, ao tempo em que depositavam, em nossa missão, uma fé de Cristo novo. Nem foi preciso limpar o sujo da mentira, pois não houve narrativas. E, sem narrativas, perde-se a decoração dos tais brilhos de invencionices. Acredite em nós, Companheiro, eles de nada sabem. Ousaríamos dizer: nunca saberão. Depomos aqui as nossas armas e brasões, recolhendo-nos ao descanso de agora em diante.

— Vão! — disse Acácio, ao tempo em que os abençoava com o sinal dos SYLs, em sintonia com o farto silêncio do meio da tarde.

Antes do quinto trio se achegar de vez, ele sacou tudo; apenas, pondo seus olhos pios no miolo dos olhos infantes dos três.

Dos lábios de Acácio, escapou:

— Sant’Anna, Sant’Anna!… Pelo jeito, este Fantasma não deixou nenhum sinal na casa de Deus. Estou certo?

— Sim, Companheiro Acácio! — os três concordaram.

E Acácio nem ousou inquirir pelos depoimentos das Filhas de Maria, do sacristão e até do senhor pároco. O triunvirato viera de mãos abanando; nelas, estavam tão limpas!, nenhum suspeito sequer.

Acácio levantou-se, passou as mãos fortes e pequenas sobre o tecido da camisa branca, como se engomando-a, e cuidou que já havia uma lua faceira no céu do fim de tarde de Licânia.

Quando fez menção de entrar e recolher-se, ouviu a voz firme de Dandora, a interrogá-lo:

— E Aristides, Dederardo e Gatinho? O que eles colheram, senhor Acácio?

— Fiel Dandora, sou um mero investigador, não sou Deus para construir tudo em sete dias. Pelos meus planos, acredite, logo darei auspiciosas notícias. Vá para casa, sim — e pôs a sua mão direita, firme, sobre o ombro esquerdo de mestre Dandora.

Neste momento, deu-se um eclipse lunar. O firmamento de Licânia mergulhou numa escuridão incomum, enquanto os galos passaram a cantar, desmemoriados com a mudança repentina do tempo. Com pouco, um trovejar nas alturas do Serrote da Rola. Tão retumbante, acredite, que tudo que eram damas fuxiqueiras sentadas nas calçadas pediram perdão a Deus, a jurarem nunca mais falar mal da vida alheia. Desesperadas, correram desesperadas para dentro de casa, a trancarem as portas com chaves, trancas e cadeados.

Uma ventania, daquelas de levantar as saias das moçoilas, correu pelas ruas licanienses. Ninguém via um palmo à frente do nariz.

— Dandora? É você? — inquiriu Acácio, com poeira nos olhos, ao sentir passos à sua frente.

Não conseguindo divisar por nada, Acácio ouviu um apelo baixo soprado ao pé do seu ouvido.

— Dan-do-ra? É vo… — mal articulou aquelas palavras, Acácio desmaiou.

 

***

 

Enfim, dou cabo a este capítulo, apesar da calma de escrevinhador, com as mãos trêmulas.

Voltarei, prepare-se para o desfecho da trama.

Que Deus me guie e abençoe. Amém.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]