O Fantasma de Licânia (Parte XX) – Clauder Arcanjo

Para ninguém

(porque este não haverá de ser um bom capítulo)

 

Há um princípio de motim nos ares de Licânia. Sim, um motim daqueles de dar arrepios até em quem não tem medo de fantasma algum. Explico.

Lembra-se dos cavaleiros da Scotland Yard de Licânia? Pois muito bem, eles, arregimentados por nosso Companheiro Acácio, encontram-se relegados e esquecidos nesta trama detetivesca há vários capítulos.

E, caro leitor, quando um personagem se vê abandonado já é um problema; imagine você quando o caso é de uma legião de abnegados?

Cabo Jacinto Gamão, desde então designado Grão-mestre Supremo da SYL, com sua coroa de louros sobre a cabeçorra, comandava o motim. Fiel a seus valores, ele resolvera chamar aos costumes o nosso Holmes provinciano.

Armado de seu inseparável cacete de jucá, Cabo Jacinto seguiu para a pensão do Raul. Não foi só, os dezoito legionários da SYL seguiram-no, em ordem unida. “Um por todos, todos por um!”, gritou um deles, amante das afrancesadas tramas dos mosqueteiros.

Ao entrar na pensão, Cabo Jacinto deu com a figura de Acácio abandonado no fundo de uma rede: os olhos postos nas telhas vãs e com a cabeça mais perdida do que a de um cego em tiroteio. Por entre os lábios, Acácio solfejava: “lábios que beijei… mãos que eu afaguei…”.

— Levante-se logo daí, seu filho de uma égua! — disparou Cabo Jacinto, com o cacete de jucá em riste.

Mestre Dandora, sempre zeloso na defesa de seu mestre, interpôs-se entre o cacete e a vítima:

— Alto lá! Todos nós juramos respeito às regras da SYL. E uma delas, lembram?, é tudo fazer para proteger o nosso líder maior.

— E é líder quem nos abandona? E é líder nosso quem traz na cara esse jeitão de abestalhado? Responda-me, responda-me, Dandora? — esbravejou Cabo Jacinto, com as veias do pescoço intumescidas e com a boca espumante de cólera. Características estas que classificavam a sua fúria no último grau da escala de terremoto-surra.

Nisto, aproximou-se Maria Abógada. Sempre solícita e caridosa, com seu manto azul por sobre os cabelos e sua indefectível voz portenha:

— Serenai, serenai, serenai. El mundo es de Dios.

Ela cuidou de ficar entre Jacinto e Acácio, ao tempo em que puxou, de um dos bolsos de seu vestido roto, um terço de contas grandes. Nos lábios, uma oração em portunhol.

Foi o suficiente para a que a paz reinasse entre eles. Com pouco, Companheiro Acácio levantou-se da rede, abraçando a todos. Minutos depois, após o velho Raul servir uma rodada de café donzelo adoçado com rapadura, nosso Holmes de Licânia foi ovacionado, feericamente, pelos legionários da SYL:

— Acácio! Acácio!…

Em seguida, sentaram-se na calçada, em grande roda, passando a conversar amenidades, tal qual o fuxico das pias Filhas de Maria: a falta de chuva, as últimas tramoias do prefeito, assim como acerca das moçoilas mal afamadas, com suas honras perdidas por engodos mil.

Iriam, assim, varar a noite, se não fossem surpreendidos pela chegada, em carreira desembestada, do Gazumba. Desta vez, acredite se quiser, mais apavorado do que bode em chuva.

— Agora é o Fantasma de Licânia, gente! O danado vem que vem! Valei-me, Senhora Sant’Anna! — esbravejou Gazumba, ao tempo em que passou, feito um raio, no rumo do Mercado.

Ele foi seguido por todos os legionários da SYL; não por coragem, mas tomados pelo medo e pelo pânico.

— Voltem aqui, cambada de cabras frouxos! — disparou Cabo Jacinto Gamão.

Não foi ouvido.

— Este caso é para poucos. Vamos somente nós, sigam-me!

 

***

 

Você nem suspeita quem proferiu essa última sentença-convocação, caro leitor?

Nem queira saber, seu curioso de uma figa! A curiosidade tem acabado com muito mau leitor, sabia? Imagine em se tratando de um péssimo leitor como você. Sim, péssimo leitor!… Pois como hei de chamar uma pessoa que lê pouco e ruim?

Você acha que estou sendo deselegante?! A literatura nunca foi casa de bons modos, ora bolas!

Promete encetar um motim contra mim?! Pois que venha tal insubordinação, e eu serei escritor emparedado por meia dúzia de leitores?!…

Melhor pararmos com tanta discussão. Recolher-me-ei, agora, à rede funda do silêncio.

Quanto ao emissor da sentença?!… Ora, ora!; eu, acerca disso, nada mais direi hoje. Isto já é assunto para o próximo capítulo.

Bem que eu suspeitava, desde o início, que este não haveria de ser um bom capítulo.

— Serenai, serenai, serenai. El fantasma es de Licânia.

Bom domingo, senhora Maria Abógada.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]