O Fantasma de Licânia (Parte XIII) – Clauder Arcanjo

Para um alguém leitor

(porque este capítulo há de se realizar)

 

— Seu cavalo bruto! — gritou Dandora, partindo para cima do equino.

Nosso Holmes de Licânia, ainda grogue com o coice bem no meio das fuças, tentava manter-se de pé. Com muito esforço, ele conseguiu deixar o muro, entrando em casa. Todo banhado de lama e fezes; apenas os olhos à mostra, sanguíneos e assustados.

Enquanto isso, um festival de coices e mordidas, entre Dandora e o cavalo Basílio, dava-se no muro do Aparício. Como Dandora, tomado pelo espírito de vingança e lealdade ao seu mestre Acácio Holmes, levava algumas patadas de vantagem, o Aparício cuidou de afastá-lo do cavalo, com receio de mais uma perda entre os seus animais de estimação.

— Chega, seu Dandora! Nosso investigador já está vingado. Saia daqui, e vá cuidar do nosso homem.

Ao saírem à rua, as fezes que cobriam o corpo de Acácio endureceram rapidamente com o sol a pino; formando uma espécie de manta fétida e negra sobre a pele e as vestes do nosso Holmes de Licânia. Acácio e Dandora, ao fazerem a curva na esquina do Mercado, foram saudados por um gaiato:

— Vejam! Mestre Dandora conseguiu pegar o Fantasma de Licânia.

E aí a coisa resvalou para a guerra aberta. O que foi de pedra, barro, telha, bosta seca, areia, pedaço de pau… tudo foi convertido em arma de ataque contra o suposto fantasma.

A primeira salva de petardos foi tão agressiva que mestre Dandora, pela primeira vez na vida, viu a morte de bem perto. Ela era feia e jogava tudo sobre o homem. Antes do segundo ataque da artilharia de rua, ouviu-se um repicar de sinos, seguido de percussivas batidas de penicos. Sim, eram os legionários da SYL, os quais, armados de baladeiras e de espingardas de sal, perfilaram-se na vanguarda e na retaguarda da dupla vitimada. Em menos de cinco minutos, dispersaram os arruaceiros com certeiras pedradas e com ardentes tiros de sal.

— Por aqui, por aqui! — João Américo abrira a porta dos fundos de sua residência, a pedir a todos os SYLs que entrassem, saindo da zona de litígio.

Seu João Américo, antes de discorrer com a sua análise filo-equino-proto-anarco-histórica, assumiu o posto de enfermeiro do nosso Holmes. O estado do Sherlock licaniense era digno de pena. Uma conceituada e tradicional carreira de história investigativa jogada na lama, e, além do mais, recoberta de sangue! “São os ossos do ofício!” — declarou um dos presentes. O que foi aparteado pelo jovem Aristides:

— Neste caso, creio, são as merdas do ofício!

Feitos os curativos básicos, Mestre Dandora pediu que todos os deixassem a sós por alguns instantes. Até hoje não se sabe bem todo o teor daquela conversa, entre Acácio e Dandora, naquele fatídico dia. Contudo, duas coisas ficaram por demais evidentes. Vejamos. Em primeiro lugar, foi necessário outro banho de creolina. Uma lavagem tripla, deixando as partes pudentas do nosso herói em carne viva. “Meu Deus, o banho de creolina é pior de que mil e um coices do cavalo do Aparício!” — esbravejava Acácio, enquanto Dandora esfregava-o com água, sabão, creolina e vassoura de piaçava.

E a segunda?! Calma, leitor, estou vendo o modo mais digno de bem narrar.

Pois muito bem, aquele coice mexera com a consciência crítica do nosso herói. Se antes o primado dos bons modos dava o tom e a regência; agredido, nosso herói cuidou de decretar (e instalar) o regime da exceção e da força bruta. Para início de conversa, ele convocou Cabo Jacinto Gamão para uma reunião extraordinária, a portas fechadas. A tal reunião varou a tarde, entrando na noite. Quando saíram, passava da meia-noite; depressa convocaram todos os legionários da SYL para, perfilados, receberem as instruções de guerra.

Foram divididos em sete grupos de sete meninos: grupamentos nominados de A a G. Acácio acreditava que o numeral sete detinha uma longa história de ligação com a sua carreira de sucesso (desde os tempos em que ensinava as crianças do bairro a entender os astros e as estrelas do Universo).

— Atenção! Grupo A, o campo de investigação de vocês será o Caneco Amassado. Investiguem a todos, nada deixem passar. Grupo B, o campo de vocês será o outro lado do rio: casas, moitas, cercados… observem e analisem a tudo e a todos. Grupo C, o Alto da Liberdade. Grupo D, o Centro. Grupo E, o Largo da Matriz, bem como os seus arredores. Grupo F, o Bairro do Matadouro. Grupo G, o São João. Nossa arma símbolo será um cacete de jucá, não tão fornido quanto o do Cabo Jacinto, mas, creiam-me, deveras eficaz para espantar gente e coisas do Além. Acabei de receber o meu. Vejam! Um belo presente do nosso Grão-mestre Supremo da SYL!

Um mapa de Licânia posto sobre a mesa grande da sala, com Acácio a apontar para cada bairro da cidade. Ao tempo, claro, em que esclarecia a estratégia maior:

— Vamos de fora para dentro. Da periferia para o Centro. De forma tal que, ao fim da noite, haveremos de ter tangido, e encurralado, este maldito fantasma… para aqui — Acácio apontou, com seu cacete de jucá, o ponto no mapa de Licânia onde se situava a herma do poeta Padre Antônio Tomás.

Cada grupo recebeu reforços nos armamentos e nas provisões: sete cacetinhos de jucá, um par de algemas de flandres, uma Bíblia, um apito de plástico, que ficaria sob os cuidados do líder do grupo, uma banda de rapadura preta e uma quartinha de água serenada.

— Qualquer elemento suspeito deve ser, imediatamente, conduzido para a cadeia pública. Na paz ou sob a ordem do cacete de jucá.

Nisto, tomado pela vontade augusta, Companheiro Acácio deu um grito de guerra tão alto e forte que foi menino para tudo que era canto, menos em direção aos locais pré-estabelecidos.

— Voltem aqui, suas cambadas de éguas!

E assim, nosso Holmes, cabisbaixo, filosofou:

— Meu reino por um exército de homens de verdade!

 

***

 

Na próxima semana, é o jeito, terei que arregimentar outros legionários.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]