O Fantasma de Licânia (Parte XII) – Clauder Arcanjo

Para seu ninguém

(porque este capítulo há de decepcionar)

 

— E este Fantasma de Licânia não vai aparecer, não?! Não seria este bicho um baitola?

Tive que ouvir, pelas costas, caro leitor, tal desabafo. Confesso que aquilo mexeu com meus brios de escrevinhador de província.

Decidi que, mais de que depressa, teria um reservado com o meu personagem principal, protagonista desta noveleta policial ribeirinha. Como bem sei dos melindres lítero-psico-tramautológicos do Companheiro Acácio, programei visitá-lo ao cair da tarde, quando, confesso, sempre o flagrava mais aberto ao novo, ao belo e ao sublime.

Entrei em seu quarto quando o crepúsculo copulava sanguineamente com as cumeadas do serrote do outro lado do rio Acaraú, ao tempo em que banhava de carmim as copas das carnaubeiras festivas com o aracati. Encontrei-o na companhia de Fernando Pessoa. Sim, pois nosso Holmes de Licânia lia e relia, concentrado, páginas seguidas de O livro do desassossego.

— Você aqui? — indagou-me, ao sentir a minha presença, sem tirar a vista da prosa de Pessoa.

— Preciso conversar com você, Companheiro Acácio!

— Pois não. De certa forma, a gente se conversa pelas suas páginas; apesar de você, quase sempre, não me dar a menor chance de defesa — disparou, enquanto um sorrisinho marcava-lhe os lábios finos.

Tudo que eu queria evitar, leitor, seria um mergulho no mar tenebroso e agitado da literatura. Há muita mágoa e remorso nessas águas fundas; e, isso, caso fosse posto sobre a mesa, levaria minha missão ao pântano do fracasso iminente.

Silenciei, baixando o rosto, ao tempo em que franzia o cenho. Como Acácio é um sujeito que se entrega fácil ao perceber que, mesmo sem querer, ferira alguém, colhi-lhe, de pronto:

— Deixemos o passado para trás! O que o trouxe até aqui, Clauder Arcanjo? — inquiriu-me.

Tive que me cercar de rodeios e entrelinhas. “Entrava pelo bico do pinto e saía pelo ovo do pato”; como gosta de arreliar comigo a minha sogra, quando eu tergiverso demais.

Companheiro Acácio ouvia-me, atento; contudo, como exagerei no aproximativo, ele me interrompeu, lacônico:

— Deixe de muito cerca-lourenço, Clauder Arcanjo! Tire por dentro, vá! — decretou.

Pedi um copo de água da quartinha serenada, ajustei a voz e confessei-lhe:

— Estamos na décima segunda parte de nossa aventura detetivesca, e os leitores estão a se irritar conosco.

— Conosco!?… Não seria melhor dizer que os leitores estão a se irritar contigo? — aparteou-me Acácio. Levando a mão direita a cofiar o bigode negro e bem aparado.

— Toda obra de ficção, Acácio, é uma parceria entre autor e personagens. Nada na literatura é obra de um homem só. Quantas e quantas vezes, você bem sabe, as minhas histórias não ganharam rumo próprio, deixando a estrada traçada por este ficcionista, devido a objeção pessoal de alguma personagem? — admoestei-o.

Companheiro Acácio Holmes levantou-se, pegou da sua bengala, não sem antes vestir-se com traje detetivesco. Pegou o seu cachimbo sobre a escrivaninha, guardou Pessoa e saiu, deixando-me a falar sozinho.

— Aonde você vai, seu mal educado? Isto não são modos de um cavalheiro, sabia? — disparei, quando ele já dobrava a esquina do mercado.

 

***

 

Companheiro Acácio não esperara por mais nada, porque já sabia o que angustiava a meia dúzia dos leitores deClauder Arcanjo. Viciados em aventura, eles pediam (e queriam) mais ação.

Ao entrar no Mercado Público, chamou seu assistente Dandora, que dormitava no balcão da bodega do Edir, a escutar as filosofices indecifráveis do João Américo:

— O dever nos convoca, mestre Dandora!

Rumaram, em passos discretos, para a casa do Aparício, palco do sumiço da jumenta Januária. Sumiço este, vocês bem lembram, logo atribuído ao Fantasma de Licânia.

— Seu Aparício, pedimos licença — sou o investigador Acácio e este é meu assistente, senhor Dandora Watson — para visitar o local onde a sua jumenta Januária estava amarrada, antes de você dar pelo sumiço do seu leal Equus africanus asinus.

— E o que o diacho é “eco do sino”, seu Acácio? Só sei que foi o desgramado do Fantasma de Licânia! Minha jumentinha, pobre Januária! — Aparício, ainda muito desconsolado, derramava-se em copioso choro.

— Sei, sei! Explicarei tudo a você, seu Aparício. Equus africanus asinus é o nome trinominal. Sua jumenta pertence à família Equidae… — quis jactar-se Acácio.

— Mas a família de Januária sou eu, seu investigador! No início deste ano, eu até pensei em batizar a bichinha, registrando ela depois, no Cartório do Mundola, como Senhorita Januária Aparício, reconhecendo Januarinha como minha única herdeira.

Dandora teve que entrar na conversa:

— Homem, vamos logo para a investigação! — convocou mestre Dandora.

— Ao campo de investigação, então! — concordou Acácio Holmes, suspeitando que aquele diálogo levá-lo-ia ao infindo cercado da burrice.

Entraram, seguindo, em passadas largas, para o muro da casa. Lá chegando, depararam-se com uma fedentina sem fim. Porcos, galinhas, marrecos, perus, pombos, jumentos, cavalos, ovelhas, vacas, bezerros… misturavam-se, pisoteando sobre um lamaçal de fezes. Ao canto, uma torneira velha a pingar ininterruptamente, alimentando o sumo do pântano pestilento.

— Onde se encontrava a tal desaparecida na noite do crime? — indagou-lhe nosso investigador.

— Aqui, bem aqui! Eu amarrava a bichinha toda noite junto a este cocho, separando para banhar a minha princesa com água limpinha; bem como mantendo ela longe do tarado cavalo Basílio, sempre a querer se meter com a minha Januária. Veja só, cavalo sem origem! — explicou, apontando um local mais recluso.

Acácio ligou sua lanterna, e abaixou-se.

— O que você está fazendo, Acácio? — indagou-lhe o seu assistente Dandora.

— Elementar, meu caro Dandora. Preciso colher as impressões digitais da indigitada.

Neste exato momento, Acácio Holmes aproximou-se demais do cavalo Basílio, tocando, de passagem, no traseiro do equino. Para cada ação, bem nos ensinou Newton, corresponde uma reação, com igual intensidade e de sentido contrário.

Um coice certeiro atingiu o nosso Holmes de Licânia bem na altura da testa, arremessando-o, desacordado, na lama fétida.

Se fora uma reação desproporcional? — você, caro leitor, me indaga, fisicamente falando.

Mas quem lhe disse que Sir Isaac Newton ensinou as leis da física aos muares e equinos?

 

***

 

Semana que entra, espero que de forma limpa e cristalina, voltarei para o desfecho desse coice investigativo.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]