O Fantasma de Licânia (Parte X) – Clauder Arcanjo

Para Caio Porfírio Carneiro

(In memoriam)

 

— Saiam daí, seus frouxos! — gritou nosso Sherlock Holmes de Licânia; por não suportar ver os seus recém-nomeados assistentes, cavaleiros da nobre Scotland Yard de Licânia (SYL), escondidos embaixo da escrivaninha da delegacia.

Nem deu tempo para a turma toda sair, quando, de repente, adentra o ambiente o senhor prefeito, seguido por seu conhecido séquito de áulicos.

— Queria ter um particular com o senhor, seu Acácio.

— Um minutinho, meu senhor, que estamos num exercício simulado de perseguição fantasmal — atalhou o nosso Companheiro Acácio.

Nisto, o Paulo Bodô, escondido por detrás da porta de entrada, chupando o caroço de um cajá verde, depois da décima primeira pinga do dia, sapecou sua gaitada farsesca, seguida da sentença:

— Exercício de frouxidão, isso sim!

Como a turma que se ajuntara do lado de fora espocou no riso e na gaiatice, turma esta que já passava da casa da centena, Companheiro Acácio pediu que os seus legionários ficassem perfilados à frente do prédio, enquanto ele levaria um particular com o prefeito.

— Você me pediu um particular? — perguntou Acácio, enquanto corria os olhos pela legião de puxa-sacos que queria entrar com o alcaide.

— Fiquem também do lado de fora. Voltarei logo — ordenou o chefe da municipalidade.

Os dois entraram para uma cela mais ao fundo, e horas se passaram.

Como tudo em Licânia cai na casa da política, da cachaça e da jogatina, com pouco tempo o cenário à frente da cadeia pública mudou completamente. Duas rodas se formaram para discutir pontos fundamentais. Primeiro, a serviço de qual partido estava aquele Fantasma de Licânia; e, em segundo lugar, a quem interessava o sucesso da missão de Acácio Holmes e da tal SYL. Num passe de mágica, um comércio de pingas e tira-gostos se instalou em frente à delegacia. Cachaça de tudo que era tipo: serrana, curtida no couro de cobra, envelhecida em barris com caju, importada da Serra da Meruoca, desdobrada com vinho e gengibre. Sem falar nos exóticos tira-gostos: casca de limão ou de laranja, pedaço de melancia, seriguela, e os mais requintados: naco de carne assada, tijelinha de paçoca, de panelada ou de rabada. Na calçada, à luz das lamparinas, o bozó e o baralho corriam soltos, e as apostas se faziam cada vez mais altas. “Eu sou mais o seu prefeito!”; “Eu aposto todas as minhas fichas no Acácio; o cabra mal chegou e já agregou a meninada e o Cabo Jacinto Gamão na sua causa.”; “E isto não é pouco! Quem traz consigo a lei, meus amigos, leva uma vantagem de corpo e meio!”; “Não estamos falando de corrida de cavalo, não, seu Zé Messias!…”

Horas depois, Companheiro Acácio e o senhor prefeito apontaram na calçada da delegacia. Um silêncio grosso invadiu a noite.

Todos esperavam mais um longo discurso do chefe do Executivo municipal. Ledo engano. O homem cobriu-se de chapéu e de segredos, e fez sinal para seus assessores, rumando, a passos largos, para a prefeitura.

O Companheiro Acácio elevou e baixou o braço direito e declarou, em latim, para o seu exército de assessores:

— Noctis longa dies veniet cito.

Seu Raul, com o bucho pejado de pinga e de paçoca, e com os bolsos cheios do apurado do bozó, acompanhara a cena e o latim, boquiaberto. Sem entender nada, virou-se em direção ao João Américo, inquirindo-o:

— O que esse filho de uma égua disse, João Américo?

— Que a noite é longa, e o que o dia já se anuncia, Raul!

Quando se espera algo e surge outra coisa, os músculos e o cérebro se extasiam, como a mergulharem num mar de pasmaceira e indecisão. Em Licânia, caro leitor, naquela noite não fora diferente. No entanto, quanto maior o recuo (assim aprenderam com os bodes) maior a marrada. Pois muito bem, após alguns instantes de inação, a revolta cresceu, o céu escureceu, as lamparinas foram apagadas, a mundiça cercou o campo de batalha… Contudo, antes que tudo resvalasse para mais um motim licaniense (num esconjuro de pau, pedras e pernadas), Cabo Jacinto Gamão deu o seu grito de guerra (ou seria de paz?):

— Todo mundo para casa. Vão em paz, senão… — pronunciou tal ordem, amansando o respeitado cacete de jucá.

Houve rumores e rangeres de dentes, todavia a lembrança da força de convencimento do persuasivo cacete de jucá obrou o supremo milagre da dispersão ordeira da turba.

— Noctis longa dies veniet cito! — repetiu Companheiro Acácio Holmes para a legião de assessores da SYL, que ainda se mantivera em pé e a ordem.

Tão só com a segunda ordem, os SYLs se despediram, marcando encontro para a Praça Padre Antônio Tomás no dia seguinte, logo cedo.

— Houve algum indício do Fantasma de Licânia nesta madrugada?

Calma, leitor, a província mergulhou num sono limpo e profundo. Apenas os pássaros a chilrearem na copa dos benjamins, e os casais a se entregarem num coito libidinoso como nunca antes naquelas ribeiras.

Há dias em que até os fantasmas resolvem nos deixar viver e amar em paz.

No próximo domingo, o Fantasma há de dar o ar de sua graça.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]