O Fantasma de Licânia (Parte VIII) – Clauder Arcanjo

Para Sanderson Negreiros

 

Quem nos tira da m…, caro leitor, torna-se, na nossa corda da amizade, um dos mais fiéis e queridos amigos. Assim se deu entre o nosso Holmes nordestino e o mestre Dandora.

Não posso aqui relatar toda a conversa que se deu entre os dois, quando do banho de Acácio na Pedra da Luzia para retirar-lhe a inhaca advinda das fezes dos porcos do Raul; nem a sua continuidade, quando da imersão na creolina na volta para a pensão. Banho de imersão este que se deu nos fundos da Oficina do Zé Aguiar. Falam as más línguas que este ainda deu um calorzinho na creolina, “a fim de apurar a sua força terapêutica, purgativa e medicinal”.

— O cabrão tanto rinchava como gemia, quando a creolina quente lhe corria o corpo. Em especial, quando ela lhe lavava as partes mais íntimas.

O que interessa para a posteridade literária de Licânia é que o mau cheiro desapareceu, e que o nosso zeloso Companheiro Acácio ficara livre do “perfume dos porcos”. Podendo, a partir de então, se enfiar (e desvendar!) nos mistérios fantasmais que assombravam aquela pequena província das ribeiras do Acaraú.

Retornando à pensão, com o corpo ardido e a mente inquieta, nosso herói convocou o velho Raul para um particular.

— Todo grande investigador é ladeado por um assessor. Dandora reúne todas as condições técnicas e éticas, seu Raul, de ser o meu homem de confiança — enquanto pronunciava tais palavras, o coitado do Acácio massageava os bagos, ainda quentes e ardidos devido ao poder depurativo do banho com creolina fervida.

— E quem vai cuidar dos porcos, bem como trazer e levar a bagagem dos meus hóspedes, seu Acácio? — interrompeu-o, pragmático.

— Preciso dele apenas em regime part time — ponderou nosso herói.

— Da parte de quem, seu Acácio?! Se for do senhor prefeito, aqui para nós, esqueça! Aquele filho de uma égua é tão mau pagador, mas tão mau pagador, que não vem honrando nem o salário de dona Zélia, única professora de português da cidade, e sua madrinha de crisma.

— Não, não! Explico-lhe. Só precisarei de mestre Dandora nas horas noturnas. Quando a cidade cair no sono, seu Raul, será o momento ideal para o nosso ofício investigativo.

— Ah, assim tudo bem! Pode acertar diretamente com ele. De noite, a gente fecha a pensão, e ele fica a dormir em uma cadeira de balanço na calçada. Se, em vez de dorminhoco, ele puder se transformar em assessor seu, ótimo!

 

***

 

A primeira missão da dupla Acácio e Dandora foi reconhecer o local da primeira “aparição pública” do Fantasma de Licânia.

— Discrição, meu caro Dandora! Discrição e sigilo são as chaves-mestras de nosso mister. Elementar, elementar.

Coitado do nosso Holmes da caatinga! Mal ele palmilhou o primeiro quarteirão, repetindo o caminho de Rita Gertrudes naquela noite de Natal fatídica, já se via acompanhado por uma centena de curiosos. Este séquito de enxeridos ia do sacro ao profano. Ou seja, das pias Filhas de Maria aos bêbados da Pedra do Mercado, sem relacionar as meninas do Cabaré Caneco Amassado.

— Despistemos, a coisa sujou, meu caro Watson. Digo, meu caro Dandora.

A missão foi abortada. Melhor, fingiram seu aborto. Para, na madrugada fria, darem continuidade a tal incumbência.

Estavam os dois investigadores a revisitar todo o cenário da primeira cena do Fantasma: a catar pistas, a recolher todo e qualquer pequeno sinal, a correr a lupa em cada reentrância dos vetustos paralelepípedos licanienses, quando, de repente… Um barulho, como se a imitar um coito, quebrou a paz dos investigadores.

Mestre Dandora arregalou os olhos fundos (segundo alguns, em evidente prova de coragem; já para outros, como exata e inconteste prova de frouxidão). Companheiro Acácio levou o dedo indicador da mão direita aos lábios trêmulos (devido ao frio, que fique bem claro!), naquele conhecido modo de se pedir silêncio. Mais rápido do que o gato do Mateus, ele deu um pinote e escondeu-se por detrás do pote que havia na calçada da bodega do Edir. Neste exato instante, apurou os ouvidos e dirigiu os olhos, também arregalados, em direção ao beco de onde provinha o tal grunhido.

Mestre Dandora, leal assistente, postara-se na retaguarda do nosso Acácio Holmes. Foi o primeiro teste para os nervos do nosso investigador. Darei detalhes. Companheiro Acácio, concentrado e atento, foi “surpreendido” com uma mão fria no seu ombro direito. “Isto é maneira de se aproximar, assistente Dandora! Pensei que fosse o tal Fantasma! Aprenda uma regra básica: assistente que se preza não prega peças no investigador líder. Fui claro?”

Neste momento, a dupla Acácio-Dandora foi surpreendida por um revoar de pássaros negros e por uma risada alta, esquisita, de tom funéreo. Antes que o cérebro do nosso investigador recebesse os comandos do mundo da razão, as pernas já estavam a serviço do pavor e da emoção.

Companheiro Acácio disparou no rumo da pensão do Raul, seguido, numa fidelidade canina, pelo seu leal assistente.

Os dois cabras passaram numa carreira tão desembestada na frente da residência do João Américo que este, curando-se de mais uma das suas ressacas, a mergulhar nas Confissões, de Santo Agostinho, atribuiu o fato a mais uma presepada do Paulo Bodô.

— Este filho da Maria Horácio!

Companheiro Acácio e seu leal assistente Dandora só foram vistos na tarde do dia seguinte.

E para onde foi a coragem dos dois?, você me indaga, paciente leitor.

E eu sei?! Nem este escrevinhador de província esperava por fato tão desabonador e esquisito. Porém tudo isto, leitor, eu tentarei desvendar no nosso próximo capítulo.

— Valei-me, Senhora Sant’Anna, protetora dos escritores e investigadores aflitos!

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]