O Fantasma de Licânia (Parte VII) – Clauder Arcanjo

Para José Almeida Júnior

 

Iniciar seus trabalhos em busca de desvendar o sumiço de uma jumenta poderia enodoar a carreira promissora de qualquer investigador; mas, no caso da nossa novela, nada poderia tirar o brilho do nosso Sherlock Holmes das ribeiras de Licânia.

Companheiro Acácio, léguas antes de se aproximar da província, tomou ciência do que o aguardava. Recolheu-se, então, a fazer anotações, bem como a consultar, seguidas vezes, o seu Manual de Investigador por Correspondência (MIC). Com pouco mais, ele exigiu mudanças nos planos do alcaide.

— Nada de entrada estrepitosa. Aprendi com os grandes mestres da investigação que o segredo e a discrição são a alma do nosso negócio — anunciou, para desespero do prefeito e para decepção das coroas e dos bebuns de Licânia, que já davam como certa mais uma noitada regada a pinga braba e movida a forró rala-bucho.

— Não precisa cancelar a festança, se isto é do agrado da municipalidade. Diria até que ela não me seria de todo mal. Por quê? Elementar, ora bolas! Explico: para a boa execução do meu plano investigativo, seria ótimo para mim se todos se ocupassem com as festividades. O terreno me ficaria livre, entende? Podendo eu cuidar, sem interrupções nem sobressaltos, de colocar alguns pontos nos is, além de retirar algumas interrogações que me afligem a cachola maigretiana — declarou Acácio.

Foi o bastante, o foguetório comeu solto, a cachaça servida foi farta, e a sanfona, o triângulo e o zabumba rasgaram o silêncio da noite, até alta madrugada. A oposição, claro, pediu explicações — “Cadê o indigitado? O decifrador de paradeiro de jumenta perdida?” —; no entanto, ninguém (nem a mais renhida fuxiqueira) lhe deu ouvidos.

— Nada substitui o pão e o circo. Isto aprendi com Roma! — comemorava o senhor prefeito.

Na calada do frege (ou seria calada da noite?), Companheiro Acácio, silente e disfarçado de motorista da empresa de ônibus local, deu entrada na pensão do Raul.

— Um quarto com ar condicionado e cama de casal, por favor.

— Seu cabra, não me seja metido a besta, ouviu?!… Não sabe que condicionado aqui só o humor da minha patroa. E cama de casal nesta cidade é artigo de muito luxo! Aqui na minha pensão, fique logo sabendo, todo mundo dorme é de rede. Onde já se viu? — desabafou Raul, já dando as costas para o novo cliente.

“Tudo pela causa. Tudo pela Ordem dos Investigadores Anônimos (OIA). Além da egrégia Confraria do Bode Azul (CBA)” — pensou o nosso Holmes nordestino.

Escolheu a rede mais ao fundo, abriu sua maleta, fechada a sete chaves; e se pôs a organizar os seus apontamentos. Com método e sistemática de quem recém saiu da Scotland Yard.

Raul, quero aqui deixar registrado, caro leitor, fez menção de botar o “fresco para correr”. Foi contido pelos outros hóspedes e por uma antecipação de monta, vinda das mãos sovinas do secretário de Finanças de Licânia. “Receba, dê-me um recibo no dobro do valor e bico calado, Raul!”

O velho Raul quis dar com aquelas cédulas nas fuças do senhor secretário, no entanto as contas atrasadas de luz e de água lhe calaram mais forte, e ele teve que apagar o facho da ética, pelo menos por enquanto. Ainda deixou escapar um “filho de uma égua” por entre os dentes, contudo não foi percebido, a não ser pelos ouvidos de tuberculoso do Dandora, seu leal adjunto.

 

***

 

Passava da meia-noite quando o nosso detetive, vestido a caráter (sim, com boina, paletó, lupa e cachimbo de Sherlock Holmes!), deixou a pensão do Raul, pelos fundos. Não foi uma saída de efeito, pois na parte de trás da pensão alojavam-se os porcos.

Sim, você pode imaginar, dileto leitor, a coisa deu em merda. Darei detalhes, apesar do nauseabundo odor que empesta esta minha página. Ossos do ofício. Ou seriam dejetos do ofício? Pois bem, pois muito bem.

Quando o Companheiro Acácio Holmes abriu a portinhola que dava para os fundos, a cachorrada da rua partiu para cima daquele “ser estranho”. Na carreira, Acácio, para se ver livre da matilha assanhada, pulou a cerca e caiu de cara na lama da pocilga. E merda pra que te quero! O cachimbo, a boina, o jaleco quadriculado de investigador, a lupa, o caderno de anotações… foi tudo de bosta a dentro. Pior de tudo, o porco rei (reprodutor cevado a milho e a resto das refeições) engraçou-se com o hóspede, confundindo-o com uma nova matriz. E a coisa quase resvalou para um coito suíno acidental, o que enterraria de vez com a carreira do novel detetive. Acácio, num átimo, percebeu a ameaça e correu para dentro da pensão.

Nisto, o velho Raul e sua senhora expulsaram-no pela porta da frente.

— Seu cabra, não me seja metido a besta, ouviu?!… Não sabe que aqui é pensão familiar?!… Onde já se viu, tanta mulher no mundo e você com assanhamento com porcos e porcas?!…

A sorte do nosso detetive foi a presença do Dandora.

— Seu Raul, eu vi tudo e posso testemunhar a favor do seu hóspede.

O velho Raul chamou o leal adjunto a um canto, colhendo a sua versão. Ao cabo, deu-se por satisfeito. Contudo, com exigências inegociáveis:

— Que você, leal Dandora, lave este cabrão com água, sabão e desinfetante lá na Pedra da Luzia. Fui claro? E dê fim a tudo que ele portava: cachimbo, roupa, bloco de notas, lupa, bem como o chapeuzinho… abaitolado. E nem um pio, seu Acácio!; saiba que, uma vez enfiado na merda, o cheiro será sempre de merda. Sim, um detalhe final: na volta, dê um banho nele de creolina. Um banho bem caprichado, ouviu, seu Dandora?

E lá se foi o nosso herói, cabisbaixo e meditabundo, para a Pedra da Luzia; todo fedido a bosta de porco, acompanhado de Dandora. Este seguia-lhe os passos, guardando uma distância razoável. Por quê? Elementar, se não a creolina deveria ser usada nos dois.

 

***

 

Hoje, fico por aqui. Não tenho condições de seguir adiante. Prometi mistérios e revelações, lembra, e o que ofertei? Isto que aqui está: um texto fedido e um herói de moral emporcalhada.

Minhas tramas detetivescas foram jogadas aos porcos. Aquilo que, antes do terrível acidente, brilhavam na minha cabeça de escrevinhador de província como reluzentes pérolas, transmudou-se em…

Melhor deixar pra lá!

Semana que entra, se a creolina funcionar, eu trarei o nosso Acácio Holmes de volta.

E que o Companheiro não seja besta de querer sair mais pela porta dos fundos! Se ele tentar, vou logo avisando, dar-lhe-ei uma surra com cacete de jucá. Com mesóclise e tudo. Ora se não dou!…

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]