O Fantasma de Licânia (Parte V) – Clauder Arcanjo

Para Abraão França

 

— O Fantasma de Licânia acaba de entrar na casa do Seu Zequinha Coletor, meu povo!

A gritaria correu de esquina a esquina, por entre becos, ruas e vielas. Da Matriz até os arredores do cabaré Caneco Amassado. Enfim, em menos de meia hora, a Praça Padre Antônio Tomás estava tomada por curiosos. A garotada, sempre preterida pelos adultos, cuidava de subir na copa das algarobeiras e dos benjamins; e, de lá, privilegiados observadores, os meninotes torciam por um desfecho sangrento. Sim, que menino não é flor que se cheire. Nas ribeiras do Acaraú, propagam os mais exagerados, “eles têm parte com o capeta”.

Com pouco, o cabo Jacinto Gamão surge com seu “justiceiro” cacete de jucá.

— Afastem-se. A lei chegou! — dizia isso amansando o fiel companheiro, que já estava polido de tanto alisar as costas de bêbado metido a brabo naquelas cercanias.

Quando fez menção de adentrar na varanda da casa do Seu Zequinha, eis que a velha Lídia surge ao portão.

— O que foi, seu cabra? Aqui é casa de homem sério, safado fica da calçada pra fora — disparou nos peitos do dito homem da lei.

— Só não lhe desço o cacete, sua velha enxerida, porque nunca fui de bater em mulher. Mas que você merece uma surra, isso você merece!18

Neste exato instante, Dona Maria Djanira se interpõe entre os dois, e cuida de tanger a velha doméstica para os seus afazeres na cozinha:

— Entre, Lídia, que Madrinha Ana já lhe chama. Você bem sabe que ela só janta com o mingau feito por você.

Os dois contendores bufaram impropérios entredentes. Lídia a chispar fúrias pelas pupilas sanguíneas, Cabo Jacinto a riscar o chão entre idas e vindas; os dois a torcerem as mãos entre amuos e engasgos de ódio… Em seguida, a velha Lídia atendeu ao chamado da patroa e entrou.

Havia, caro leitor, entre aqueles dois, uma longa história de intriga mal resolvida. Desde que, numa certa noite, José, filho único de Lídia, chegou a casa coberto de sangue. Alguns atribuíram o fato a um flagrante desrespeito do jovem ao poder constituído; outros, ao mero abuso de autoridade do dito homem da lei. O certo é que o rapagão vinha coberto de porrada para os braços da mãe zelosa. E mãe não julga, absolve; não recrimina, acalenta; não perdoa, jura de morte e de ódio eterno aquele que levanta um dedo sequer contra o seu “pobre e inocente menino”.

— Quem foi o filho de uma égua que lhe fez isso, meu filhinho?

Ao saber que se tratava de mais uma obra de Jacinto Gamão, Lídia cobriu a cabeça com o velho xale negro e rumou para a delegacia. Foi entrando, chutando logo o cachorro do Cabo, a assacar uma legião de impropérios contra a soldadesca.

Cabo Jacinto Gamão estava, neste exato momento, se livrando, na latrina dos fundos da Cadeia Pública, da indigesta feijoada do Baltazar. Entre uma cólica e outra, ele mal podia entender a baderna que se estabelecera na frente do vetusto prédio.

— Se for algum bêbado, assistente Argemiro, amarre-o que eu já vou aí amansar o bicho. Remédio para cachaça é chá de jucá curtido! No lombo e nas pernas. Num instante, o cabrão recobra o juízo. Ai, ai, minha santa mãezinha! Ô dor de barriga da bexiga!, ainda acabo morrendo pela boca. Bem que eu desconfiei que a danada da feijoada estava mais para carniça de que para tira-gosto. Deus me acuda! Ai, ai, ai!…

Suado, e com os bofes ainda em estado de revolta, Cabo Jacinto Gamão teve que abandonar a latrina, pois a barulheira na frente da Cadeia não serenava.

— Quem é este corno tão valente, hein!? — foi dizendo isto e tirando o cacete de jucá do cós das calças. — Deixe estar que ele agora amansa.

— Não vá me faltar com o respeito! Não pense que sou frouxa como a senhora sua mãe, seu fedelho! — disparou Lídia.

Entrou a turma do deixa disso, e, a custo, a coisa aquietou-se; apesar de alguns ainda receberem uns tapas e umas cacetadas de ocasião.

 

***

 

Você acha que eu tergiverso demais!? Ora, ora! E eu posso segurar a Lídia?! Ela é mulher sertaneja, mãe zelosa, braba que nem… que nem…

Pouco importa. Deixemos tudo para lá, adiante!

E o Fantasma de Licânia?!

E eu sei!?… Taí, eu perdi o gosto desta fabulação. Você, leitor, é um incompreensivo. Aqui estava eu todo feliz a narrar a encrenca entre Lídia e Jacinto Gamão, e você põe água na fervura. A sua sorte, leitor, é que eu não tenho um cacete de jucá. Se não, sei não!, eu baixava ele nos seus lombos! Ora se não baixava!…

 

***

 

— O Fantasma de Licânia acaba de entrar na casa do Seu Zequinha Coletor, meu povo!

Não me olhem assim. Se enrolei com mais um capítulo sem nem mencionar um tantinho de prosa fantasmática?!…

O Fantasma de Licânia, parece, está a nos aprontar mais uma.

Estou, creia-me, com vontade de dar fim a esta história. Ô fantasminha metido a besta!

Apareça, seu desalmado! Antes que a minha meia dúzia de leitores se aborreça comigo, e vá se entregar aos encantos da novela das oito.

Novela das oito!?… Aí, assustado leitor, é muita sacanagem! Pode crer, e bote sacanagem nisso! Xô, Satanás!…

Ótimo domingo. Com todos os seus fantasmas, que fique bem claro.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]