O Fantasma de Licânia (Parte II) – Clauder Arcanjo

Para Padre Antônio Tomaz

(In memoriam)

 

— Hoje a puta Rosinha Piaba recebe parte dos seus atrasados! — gritou um arruaceiro no meio da multidão, deixando o sacristão rubro de raiva, o vigário irritado, enquanto a gaitada espocava em meio ao rito exorcista.

Lembram, leitores, foi assim que eu fechei o capítulo primeiro desta saga do Fantasma de Licânia.

Como prometi retornar, aqui estou. Pois bem, pois muito bem.

Na manhã seguinte, o Raimundo Sacristão não compareceu à sacristia para o seu papel na missa das seis; muito menos Dona Guidé, a empregada da casa paroquial, para providenciar o desjejum do velho pároco Araquento; nem Ananias, o homem da carroça, que, na madrugada fria, levava o leite branco para alimentar todas as almas — umas nem tão brancas assim (não é, Drummond?).

Isto sem falar que o sino da Matriz de Sant’Anna não repicou cedinho, como de praxe acordando a província e chamando os fiéis (e os infiéis) para o encontro com Deus e com o seu representante aqui na Terra. O sineiro não veio, como o cocheiro não veio, como os feirantes, os professores e os alunos não vieram; como até os bêbados não compareceram à Pedra do Mercado para molhar o bico e adiar a ressaca. Pasmem, até mesmo os ciganos.

 

***

 

E o que está acontecendo? E eu sei, leitor inquieto?!

Eu escrevo este capítulo sem saber aonde ele vai dar; a coisa me é soprada no ouvido esquerdo, sem o direito tomar ciência. Dizem que a literatura tem seus mistérios, mas deixemos tais questiúnculas para depois.

O caso é que a cidade estava mergulhada numa pasmaceira (ainda mais) incomum. Pior do que na modorra do meio-dia, quando, como de costume, os licanienses recolhem-se para o sono da tarde (“Reparador para quem não faz nada, vejam só!” — segundo a análise sono-anarco-filo-etilosófica do João Américo, profundo decifrador de todos os mistérios nas ribeiras do Acaraú).

Até que surge o Gerardo Arcanjo e costura um acordo com as lideranças da pequena urbe:

— Se continuarmos deste jeito, a cidade mergulha numa crise sem precedentes. Comércio, igreja, escolas, cabaré (me desculpe, a indelicadeza, Seu Padre!)… tá tudo parado.

Houve rumores de aprovação e de inquietação entre os presentes. A fina nata da elite licaniense estava reunida no Alcione Clube.

De repente, o líder da oposição dispara, com sua voz de locutor de cabaré:

— A coisa só se resolve, por definitivo, com a renúncia, em caráter irrevogável, do prefeito. Ou, se não, caminharemos para o seu “impeachment”!

— Aí dentro! — aparteou o Paulo Bodô, escondido por detrás de uma das colunas do vetusto prédio, chupando uma cajá azeda, depois de sorver a décima pinga do dia.

Nisto, o líder da oposição arregaça as mangas e cerra os punhos:

— Quem foi o filho de uma égua que falou isto?

— Égua é a senhora sua genitora! — disparou alguém sob o apanágio do anonimato.

A mão de tapa já corre solta, apesar dos rogos do coordenador da reunião, seu Gerardo Arcanjo:

— Minha gente, tenhamos modos! Deixemos as nossas desavenças partidárias para depois. A crise exige, de cada um de…

Nisto, uma cadeira passa raspando a testa do bom Gerardo.

— Queima, raparigal! — incitava o Edir do Piragibe, enquanto empurrava o Martônio, o Welshon, o Lau, o Wilson Gregório e o Gazumba para o meio do furdunço.

Arrastado pelo seu irmão Zequinha Coletor, Gerardo Arcanjo deixa, cabisbaixo, o recinto pela porta dos fundos; enquanto a guerra civil chega, por definitivo, ao palco do Alcione Clube.

 

***

 

Paro por aqui. Se Licânia resistir, prometo que estarei aqui na semana que entra.

Valha-me, Senhora Sant’Anna!

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]