Médicos populares apresentam projeto para sanar déficit do fim do Mais Médicos

Se o objetivo da Medida Provisória 890, de 1º de agosto de 2019, que propõe a criação do Programa Médicos pelo Brasil era solucionar os vazios assistenciais pelo Brasil, deixados pela saída dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos e substitui-lo de forma pacífica, as 366 emendas parlamentares apresentadas até o dia 7 de agosto indicam que não convenceu.

As emendas à MP 890/2019 apresentadas pela quase totalidade da bancada do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo deputado federal Alexandre Padilha (PT) tiveram como base a construção coletiva dos debates na 16ª Conferência Nacional de Saúde, mas em grande medida, consiste na proposta substitutiva da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares(RNMMP).

Um dos aspectos centrais para a divergência refere-se à proposta de criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). “Serviço social autônomo, ente jurídico paraestatal, privado, criada pelo Estado, que teria responsabilidade de estabelecer parcerias com estados, municípios e com o setor privado para resolver todo o problema do ponto de vista de assistência à saúde das populações vulnerabilizadas de nosso país no que diz respeito à Atenção Primária à Saúde”, explica Vinícius Ximenes, médico que atua na gestão pública e integra o Núcleo DF da RNMMP.

A deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) reitera que a MP “torna nítida” a tentativa de transferência direta de recursos públicos para o setor privado. “Isso não podemos aceitar. Por isso, nosso mandato apresentou duas emendas – que foram construídas em conjunto com movimentos sociais que são referências na área de saúde – para garantir a gestão pública do programa pelo Ministério da Saúde, mantendo os parâmetros do Sistema Único de Saúde (SUS) e respeitando os profissionais”.

Armadilhas

Vinícius Ximenes explica que a medida provisória proposta pelo governo Bolsonaro está longe de resolver a demanda social por provimento de médicos no país, “é um cavalo de Troia”. “Uma medida cheia de enormes oportunismos e grandes armadilhas”.

O representante da Rede alerta que a categoria médica está sendo enganada com a proposta de que a Adaps será a estrutura para materializar a “carreira de médico de Estado”.

“Um serviço social autônomo contrata os profissionais via CLT, apesar de colocarem alguns níveis de remuneração, algumas outras questões são importantes como níveis de carreira, linearidade de progressão, característicos nas carreiras de Estado; nada disso está previsto na proposta”.

A proposta contida na MP 890, além de diferente da “carreira de médico de Estado”, defendida por algumas entidades médicas e o Conselho Federal de Medicina, propõe a precarização do trabalho, no atual cenário de aprofundamento da reforma Trabalhista, explica a médica sanitarista Lilian Silva Gonçalves, também do Núcleo DF da RNMMP.

“Discutir uma carreira, diante de uma via de contratação que está sendo deslegitimada, levando a classe trabalhadora a vínculos cada vez mais precários, é uma falácia desse governo”.

Outro ponto destacado pela Rede é a “fragilização” dos mecanismos de controle social da Adaps, normas para licitações e contratos da administração pública. “Um serviço social autônomo não precisa seguir a Lei 8666, de 1993, que regula compras, contratações e licitações da administração pública. Portanto, ele [o serviço] criará sua própria lógica de ordenamento. Essa Adaps tem atribuições de, por exemplo, contratar seguradoras, planos de saúde para garantir serviços diretos de Atenção Primária à Saúde da nossa população”.

O que, na avaliação de Ximenes, poderá gerar o atendimento conforme o perfil de renda que o cidadão possuir, com impedimentos de acesso.

A fiscalização e transparência dos serviços contratados e oferecidos também fica em risco, uma vez que não está prevista a participação do Conselho Nacional de Saúde, principal instância de participação popular e controle social da saúde, no Conselho Deliberativo da Adaps.

Outro ponto de divergência diz respeito à formação de médicos de família e comunidade, sem a devida qualificação e que poderão servir como certa “bucha” para a expansão dos empreendimentos do setor privado na saúde. “O médico de família e comunidade bem formado é capaz de resolver 80% a 90% dos problemas de saúde e os 10% a 20% que ele não consegue resolver ele tem que ter uma boa retaguarda clínica [atenção secundária e terciária] para ajudar a atender as demandas da população. [Porém] esses planos estrangulam esses médicos de família e comunidade no sentido de que ele além de resolver os 80% a 90% dos problemas, terá que segurar ao máximo a demanda de 10% a 20% para não chegar aos outros níveis de atenção”.

A MP também serviria para desestimular a residência médica. Segundo Lilian Gonçalves, para fazer a residência o médico consome dois anos e recebe uma bolsa em torno de R$ 3 mil, já a especialização em Medicina de Família e Comunidade, muitas vezes distante da prática do ambiente da Atenção Primária à Saúde, pode variar entre R$ 15 mil e R$ 20 mil.

“Os valores não estão estipulados, mas a bolsa hoje paga pelo Mais Médicos [especialização] é na faixa de 11 mil reais, mas imagine essa bolsa da especialização pela Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária proposta pelo governo Bolsonaro competindo [de 15 mil a 20 mil reais] com a bolsa [de residência médica vigente] que não passa de 3.500 reais, e obter o título em dois anos e não ter vínculo nenhum; o que o médico recém-formado vai priorizar?”

Propostas da Rede

A criação de uma proposta substitutiva à MP 890, segundo a médica Lilian Gonçalves, tem origem nas discussões e participação dos profissionais da RNMMP em todas as etapas da 16ª Conferência Nacional de Saúde e no repúdio ao caráter privatista da medida proposta pelo governo.

Logo após o anúncio da medida provisória, em 1º de agosto, foi lançada uma nota da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares sobre a proposta do Programa Médicos pelo Brasil, apresentada na conferência como moção de repúdio por “fragilizar as relações de trabalho e de entrada do modelo neoliberal para a gestão do SUS”. O documento, segundo Gonçalves, recebeu o apoio de 548 participantes e, submetido ao plenário de votações, foi aprovado por 80% dos delegados da Conferência Nacional de Saúde, em Brasília.

Na proposta substitutiva que foi tomando forma, em meio à 16ª Conferência Nacional de Saúde, a Rede propôs a criação de uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde.

“Ao invés de serviço social autônomo que possamos ter uma fundação [Fundação Pública Federal para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Fundaps] de direito público, com contratação dentro do regime jurídico único do servidor público federal. Acreditamos que o regime jurídico único nesta conjuntura, apesar de eventuais críticas, é o melhor modelo para pensarmos uma lógica mais segura em relação aos ataques pensados pelo governo Bolsonaro”.

Também o retorno do lugar do Conselho Nacional de Saúde nos processos deliberativos e manutenção da Fundação de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, com caráter estatal.

Para coibir a concorrência entre especialização e residência médica, a proposta substitutiva da RNMMP indica a equiparação das bolsas pagas para a especialização ou e residência em Medicina de Família e Comunidade.

“Quem fizer a residência médica, a fundação vai equiparar o salário. Ou seja, o fundo para pagamento da residência médica também é federal, mas é um recurso específico de 3.500 reais, e pagando 11 mil reais para quem está na especialização, a gente complementar essa bolsa para equiparar [quem está na residência] com quem está na especialização”.

A Rede resgatou ainda, na atual proposta, pautas de formação e educação do Programa Mais Médicos, abandonadas pelo atual governo. “A partir de 2023 temos que ter universalização de vagas de Residência Médica no Brasil. Ou seja, para cada vaga de egresso é preciso garantir uma vaga de acesso direto à Residência Médica. A exemplo de outros países, poderemos instituir a regulação de vagas. Proposta histórica da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade”, acrescentou Ximenes.

Sobre a Revalidação de diplomas estrangeiros dos cursos na área de saúde, a proposta é que a Fundaps participe com o Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Ministério das Relações Exteriores e outros órgãos competentes no processo de planejamento e decisão. Da mesma forma que a regulação da formação de especialistas.

Concurso público, prova de títulos e processo seletivo não apenas para profissional médico, mas para outras áreas de saúde de nível superior também integram o plano da Rede.

“[O profissional de saúde] ingressa na carreira a partir de concurso público, ou a partir de concurso de prova e título, ou para os tutores que irão ajudar na formação, processo seletivo público. A ideia dessa carreira de Estado não é somente para médicos, tem um caráter multiprofissional para todas as áreas profissionais de saúde, de nível superior com incidência na Atenção Primária à Saúde. Apontamos um prazo de cinco anos para ser regulamentada a carreira, a partir de consulta feita ao Conselho Nacional de Saúde.

Outro requisito apontado para o ingresso na “Carreira de Estado Interfederativa para Atenção Primária à Saúde” – como está sendo chamada na proposta –  às áreas de vulnerabilidade e difícil fixação, é que nos três anos do estágio probatório seja garantido programa de especialização em Medicina de Família e Comunidade, para a qualificação destes profissionais.

Lilian também pontua que para garantir o que está na legislação do serviço público, garantindo a transparência nas compras e licitações, o ordenamento jurídico terá como base a Lei 8.666/1993.

O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) valorizou a iniciativa. “São emendas que buscam garantir o caráter público da Atenção Primária à Saúde e buscam recuperar a ideia real de uma carreira pública interfederativa não somente para médicos mas para o conjunto dos profissionais da área da saúde”.

Na opinião do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), o governo Federal deixou a postulação sem médicos ao fragilizar o Mais Médico. “Agora usa a falta de médicos como pretexto para atacar o caráter público, universal e gratuito do Sistema Único de Saúde. Junto com a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares lutaremos pelo direito à saúde de nossa população, mostrando que para assegurar a presença de médicos em todos os municípios do país é necessário fortalecer o sistema público de saúde e não enfraquecê-lo, como propõe o governo”, afirmou.

Segundo Gonçalves, a apresentação da proposta substitutiva, acolhida em emendas dos parlamentares do PSOL e PT, foi protocolada em 7 de agosto. A Casa terá agora pouco menos de 90 dias para apreciação e aprovação da nova lei. “Foi uma construção coletiva da Rede de Médicas e Médicos Populares, que bebeu de todas as fontes, desde os pesquisadores da FiocruzCebesAbrasco, trabalhadores e usuários do SUS”.

Ximenes disse se tratar de uma alternativa para fazer o “bom debate e garantir as conquistas do povo brasileiro do direito à saúde”.

 

Brasil de Fato