Luis da Câmara Cascudo e a Pena de Morte na Cidade do Natal

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Luís da Câmara Cascudo.

 
Quatro homens morreram na Cidade do Natal por ordem da Lei. Pretinho foi enforcado a 23 de maio de 1843, Inácio José Baracho a 30 de julho de 1845, Alexandre José Barbosa a 31 de outubro de 1846 e Valentim José Barbosa, por não haver sentenciado que o quisesse executar, teve morte por fuzilamento, a 7 de agosto de 1847. Dos quatro justiçados apenas Alexandre cometera o crime na cidade.
A marcha processual não era simples. Estava em vigor o Código de Processo Criminal do Império (Lei de 29 de novembro de 1832) com as modificações da Lei de 3 de dezembro de 1841, sob o número 261, e o Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842.
Instaurado o inquérito, apurados os indícios, com a direção do delegado de polícia e, às vezes o juiz de paz,
podia este pronunciar, mesmo sendo apenas delegado de polícia, enviand0 imediatamente o processado tio juiz municipal, a quem cabia sustentar ou revogara pronúncia. Seguia-se, como no processo de Baracho, um júri de acusação para positivar se havia matéria justificativa da pronúncia e o juiz de direito concordava ou não, mandando a papelada para o promotor público apresentar o libelo-crime-acusatório. Noutros processos, como no de Alexandre, o juiz municipal julga e manda ao promotor, por ter a lei n° 261, de 3 de dezembro de l841, abolido o júri de acusação, ainda existente na Inglaterra e Estados Unidos. Libelado, procedia-se ao júri. Condenado, o juiz de direito, ex-ofício, apelava para a Relação do Distrito, então em Pernambuco. Negado o provimento volviam os autos, com o acórdão. Mandado cumprir, intimado o réu, tinha este os oito dias para o recurso da graça, em petição dirigida ao Imperador. Era instruído por um relatório do juiz de direito, circunstanciado e com cópias das peças principais. Ia por intermédio do presidente da Província ao Ministro de Estado dos Negócios da Justiça. Este submeteria ao Imperador. Não recorrendo o réu, o juiz de direito interpunha por ele a petição da graça, a comutação da sentença de morte em prisão perpétua, que o povo chamava galés perpétuas, recordando o serviço dos remeiros escravos, por lei ou conquista, nos barcos do Rei.
Não se julgando o réu digno da graça do Poder Moderador, simbolizado pelo Imperador, o Ministro da Justiça comunicava às autoridades locais, por aviso. Recebendo-o, com os documentos que tinham acompanhado o relatório, o presidente da Província dava o despacho: — Cumpra-se e registre-se. Datava e assinava. Acabara-se a esperança. O juiz de direito, cientificado por ofício, informava ao juiz municipal. Este mandava intimar ao réu e marcava o dia da execução. Na forma da Lei, o escrivão intimava ao promotor público. Só então a forca se erguia, na tarde da véspera ou alta madrugada do dia do
suplício.
A cidade inteira comentava, condoída, interessada pela sorte do desgraçado. Um sacerdote iniciava as
visitas de conforto ao condenado, indo diariamente à cadeia. Executada a pena, o escrivão passava certidão nos autos, descrevendo o sucedido, minuciando a cerimónia, cortejo, autoridades presentes e se houvera oposição por parte do povo. O juiz municipal, com o processo, despachava, julgando concluída e terminando a execução-de-sentença. Ia um ofício para o juiz de direito dando notícia. O réu já estava sepultado. A forca, desarmada, desaparecera. Corriam os comentários, reavivando nos serões familiares, a coragem ou covardia do executado no momento supremo. Depois, outras preocupações vinham, dispersando a memória. A justiça fora feita…
A forca em Natal era armada na praça ou largo do Quartel da Tropa de Linha (praça Tomás de Araújo Pereira, atualmente, 1946, murada e sem serventia pública). Aí sucumbiu José Pretinho em 1843. Também ergueram a forca ao lado, onde era o mercado do peixe, englobado na construção do atual edifício do mercado público da Cidade Alta. Não ficava armada, assombrando os transeuntes, numa ameaça constante. A lei mandava desarmá-la logo após o suplício. E sua construção era rápida, durante apenas
algumas horas de trabalho, tarefa que se fazia ao escurecer da véspera da execução ou nas horas da madrugada do dia maldito. As despesas seriam-pagas pelo governo da Província.
Não havia carrasco oficial.
Designava-se um sentenciado de igual pena e, em sua falta outro qualquer preso-pobre-de-justiça. O Código do Processo Criminal do Império não previra esses casos e o juiz de direito do Brejo de Areia, na Paraíba, oficiara ao Ministro da Justiça, perguntando. O ministro era o elegante Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, futuro visconde de Sepetiba. Respondeu pelo Aviso n° 414, de 25 de novembro de 1834, dando instruções. Entre elas, que a forca fosse demolida depois da sentença cumprida e que o juiz nomeasse “um algoz dentre os sentenciados à mesma pena, ou a qualquer outro preso sentenciado, para dar execução à sentença, visto que o Código não providenciou a respeito”. Omisso também estava quanto ao pagamento do supliciador.
Pagaram quatro mil-réis na primeira vez. Chegaram a dez mil réis na segunda e terceira execuções. A derradeira foi gratuita. Constou de uma descarga de carabinas dada por um pelotão do Corpo de Polícia. A forca se erguia numa extremidade do tablado alto, espécie de palanque sem coberta, ao ar livre. Tinha, no braço horizontal, uma argola de ferro onde passava a corda, bem nova e untada de sebo para escorregar no pescoço do condenado. Uma praxe impressionante era a colheita de auxílios para a missa do enforcado. Na véspera ou antevéspera do enforcamento, acompanhado por um soldado, o preso, olhando o martírio, vinha, com os pulsos algemados, pedir de porta em porta, uma esmola para a missa que seria rezada em sua intenção espiritual. De porta em porta detinha-se o grupo espantoso e o sentenciado erguia a voz miseranda, pedindo: — uma esmola para a missa do enforcado. O enforcado seria ele mesmo. Aquela súplica de auxílio para as próprias exéquias devia ser apavorante. Com as mãos presas, o condenado levantava a pequenina e suja sacola para receber o óbulo, dez réis, um vintém.
Durava, às vezes, o dia inteiro essa peregrinação dolorosa, cerimônia preparativa das horas últimas no patíbulo. Assim, de migalha em migalha, reunia as cinco patacas, mil e seiscentos réis, o preço da missa que haveria de assistir ajoelhado, a caminho da morte. E não teria o direito de ouvir a missa completa. Quando o sacristão badalava a campainha, no momento de sanctus, sanctus, sanctus, o comandante da escolta fazia levantar o condenado e o cortejo seguia para a forca. Por que o condenado não podia ouvir a missa inteira? Porque o sentenciado valer-se-ia do santo sacrifício obtendo, no mínimo, um prolongamento de vida. Se estivesse presente quando o sacerdote fizesse a elevação, e pedisse a existência, estaria valido. Infelizmente esse recurso oral ante a hóstia não arredaria a corda do condenado pescoço.
Na manhã do suplício o réu era barbeado e ia assistir a missa na igreja matriz, perto da cadeia, acompanhado pelo juiz municipal, promotor público, escrivão, porteiro do auditório que lenta e solenemente ia lendo em voz alta a sentença condenatória. Antes da elevação o préstito seguia compassado como uma procissão, cercado de soldados com armas embaladas, sob o comando de um oficial. Muita gente ia também por piedade ou atração do espetáculo. Sempre a execução era marcada para as primeiras horas da manhã, oito ou nove. O Código Criminal proibia que alguém fosse supliciado na véspera do domingo, dia santo ou de festa nacional. O réu, com o seu vestido ordinário, as mãos fechadas nas algemas, era conduzido pelas ruas mais públicas até o patíbulo. O caminho era pela rua Grande (praça André d’Albuquerque), rua Sant’Antônio, rua do Sebo (General Osório), rua da Palha (Vigário Bartolomeu), rua Nova (Rio Branco), descendo até a praça do Peixe, espaço compreendido no atual mercado público da Cidade Alta, onde a forca se erguia.
Já uma multidão aguardava o cortejo sinistro. Os professores levavam os alunos para que o exemplo servisse. Pais e mães estavam com os filhos. O padre vinha com o condenado desde a prisão e ao pé da forca oferecia-lhe a última dádiva das senhoras católicas da cidade, pão-de-ló e vinho do Porto. O réu mastigava e bebia, inconscientemente, para retardar a subida à forca. Depois, de degrau em degrau, chegava ao alto, com o carrasco, seu companheiro de crime, que lhe pedia perdão, já marcado para o mesmo final. No Rio de Janeiro o sinal era dado pelo padre que recitava, declamando, o Creio em Deus Padre. Quando dizia “e na vida eterna”, o carrasco, que já passara a laçada no pescoço do condenado empurrava-o para fora das tábuas. O próprio peso da vítima a estrangulava. E o algoz ainda ajudava, saltando-lhe aos ombros ou, velozmente descendo, puxando o justiçado pêlos pés, multiplicando a carga para apressar a asfixia. Quem ficasse na primeira fila da assistência ouvia, no estertor derradeiro, o estalejar das vértebras cervicais que se partiam.
Em Natal o aceno que fazia o carrasco sacudir o condenado para a morte era o juiz municipal tirar o chapéu. Com os últimos estrebuchões o réu ficava imóvel. Verificado o óbito, cobriam o cadáver com um pano grosseiro. Permanecia o morto, pendurado na forca, algumas horas. A família podia reclamar o corpo e sepultá-lo “sem pompa, sob pena de prisão por um mês a um ano”, dizia o art. 42 do Código Criminal. Pedido ou não, sempre o Governo mandava enterrar o defunto no sagrado, capela de Nossa Senhora do Rosário.
Por mais estúpido que fosse o crime as missas pelo descanso da alma do enforcado eram numerosas. Corria a tradição de que eram poderosas porque se haviam remido com o suplício da forca. Os condenados apareciam pedindo sufrágios, indicando dinheiro escondido e pregando moral.
Quem, antes de 1911, passava pela rua Grande (praça André d’Albuquerque) via, numa esquina, onde está o n° 604, a velha cadeia pública. Erguia-se, sólida e maciça, com as paredes de pedra, arcadas da cantaria, dois janelões baixos e cinco no sobrado, com o xadrezado de ferro, saindo de cápsulas de chumbo, respirando vida colonial, impondo-se pelo aspecto atarracado, feio, sujo, pesado, opressor. Apesar das reformas e remodelações, através de cento e oitenta e oito anos, conservava a fisionomia severa e sinistra de uma fortaleza, um resto de castelo roqueiro, ainda fiel ao passado, pompeando na praça ridente do século XX. Detrás das grades negras, os presos furavam a vida com olhares famintos. Feita em fins de 1721, porque está pronta em janeiro de 1722, a cadeia se plantou no mesmo canto da primitiva prisão, de taipa, coberta de palha, guardada à boca de mosquete. Possuía originariamente um salão, escuro, lajeado, escorregadiço, com duas janelas para a rua Grande e uma para o poente abrigando o grupo dos criminosos, velhos e moços, misturados, sem suspeita de higiene, ideia de asseio, esperança de piedade. Recordo a velha cadeia que foi derrubada, em 1911, quando a 20 de maio, instalaram os presos na Casa de Detenção de Petrópolis. Ainda lembro o covil tremendo, com seu beiral montado por doze pilares, o maior com a haste para a bandeira. À direita, a casa-da-guarda, com uma só porta. Até quase meados do século XIX, os soldados ocupavam uma parte do próprio edifício.Depois de 1872 é que o andar superior foi desocupado pela Câmara Municipal e pertenceu aos condenados. Ali dentro gemeram vinte gerações de criminosos, separados do mundo pêlos três palmos de pedra das muralhas cinzentas. Até proximidades de 1860, os prisioneiros saíram da sala-única por uma escada portátil, descida pela bocarra do alçapão. Temendo revolta, não faziam portas diretas, ligando a casa-dos-presos à sala-da-guarda. Os homens viviam como feras numa jaula, vendo a cidade pelas barras de ferro.
Que era realmente a cadeia, diz o chefe de polícia, dr. Joaquim Tavares da Costa Miranda, em relatório de 30 de novembro de 1878, trinta e um anos depois da última execução, com melhorias, asseios, pinturas, registrados nas falas presidenciais. Costa Miranda desenha o quadro horrendo: “E um edifício onde mal
penetra a luz, tendo dois pavimentos, um térreo, dividido em três compartimentos, um central, que serve de enxovia, e dois calabouços laterais, outro superior, onde está a sala livre; é um lúgubre edifício, cujo interior contrista, e o exterior é uma campa dealbada, em comparação com o interior, que é uma furna em que seres vivos se apodrecem, maldizendo a sociedade, que os condenou a uma morte lenta em uma masmorra infecta, repugnante e asquerosa; o ar é insuficiente para a respiração dos sentenciados, a luz crepuscular, que bruxuleia na enxovia, não aviventa a organização; o chão é frio, úmido e sórdido; os presos fazem despejo d’águas servidas e urinam dentro da mesma enxovia, e o lixo e a podridão, saindo da cadeia pela fachada posterior, se escoam pelo cano, rampa abaixo, formando um espojeiro onde constantemente alguns porcos se regalam. Dentro da mesma enxovia os detentos lavam carne e cozinham: tudo ali é tétrico e medonho: tudo denuncia uma postergação da lei da higiene; tudo diz que ali está um lugar em que a sociedade exerce a vendeta, e não a mansão de recolhimento e meditação em que a consciência do delinquente sob a farpa dos remorsos o regenera para entregá-lo de novo à comunhão social. A prisão é comum; o sistema celular nunca foi aqui ensaiado. Os sentenciados não têm espaço para dormir, ficam ali tão conchegados, como abelhas na colmeia”.
O relatório é longo e vibrante. Costa Miranda nunca foi ouvido senão pêlos 158 homens que se comprimiam num espaço de 15 metros. Numa informação que ao presidente Casimiro José de Morais Sarmento dera o tenente de artilharia Francisco Primo de Souza Aguiar, em 4 de fevereiro de 1846, afirma-se que: “Os presos de ambos os sexos nunca se banhavam e cozinhavam na sala da prisão, sobre o solo coberto de pedras irregulares, de superfície úmida e lodosa. Os que não possuíam redes deitavam-se em tábuas soltas e as fezes eram lançadas num barril que ficava todo o dia a um canto”.
Em setembro de 1863, o presidente Olinto José Meira dizia à Assembléia Provincial: “Não existe em toda a
Província uma cadeia digna deste nome. A da Capital, que consta do andar térreo da Casa da Câmara, necessita de grandes melhoramentos e asseio para tornar-se apenas mais sofrível. Não considero-a capaz de atingir o estado de uma boa cadeia por mais que se despenda e se lhe faça para este fim”. Esse era o antro em que se corrigia o criminoso. Subindo pela escada, galgando o alçapão, saindo pela porta da praça, quatro homens, em cinco anos, marcharam para a morte…
José Pretinho foi o primeiro executado em Natal, na manhã de 23 de maio de 1843. Debalde revirei o arquivo dos cartórios locais, gentilmente auxiliados pêlos serventuários, sem pagamento de buscas nem esperança de certidão ou traslado. Enforcado em Natal, o crime do réu teria sido cometido na jurisdição da comarca. Nessa época tínhamos as comarcas do Natal, Vila Nova da Princesa (Assu) e Maioridade (Martins). O processo desapareceu ou foi devorado pelas traças, aliadas do esquecimento. Restam as notas que o professor Joaquim Lourival Soares da Câmara, o Panqueca, forneceu à minha curiosidade semanal. Delas me aproveitei no capítulo “Os justiçados do Natal” no Histórias que o tempo leva… (Monteiro Lobato editor, S. Paulo, 1924).
Panqueca faleceu dois anos depois de publicado o livro e ainda adiantou, com sua reminiscência admirável, detalhes preciosos. Mas não recordava a data da execução. Encontrei-a no n° 142, de 2 de novembro de 1889, da A Gazeta do Natal. E também a concordância do nome: – José Pretinho. É tudo… Feci quod potui; faciant meliora potentes. Não sabemos onde nasceu, como vivia, idade, antecedentes, espécie do delito. Era muito moço, preto, de estatura mediana, franzino, tímido, encolhido, tão abundantemente infantil que parecia cretino. Na prisão, sentado no sujo lajeado, brincava, horas seguidas, com ossinhos e pedaços de fazenda, falando só, articulando diálogos, absorvido inteiramente na distração. Ria de tudo, tão alheio à culpa, tão despreocupado, tranqüilo e sereno que se diria estar descansando numa residência amiga e não recolhido à cadeia, por crime de morte, inafiançável, e com a tremenda ameaça da pena máxima do art. 142, correspondendo ao atual  294, parágrafo primeiro, da Consolidação dasLeis Penais.
A memória popular defende o acusado, dizendo-o inteiramente irresponsável, não no sentido jurídico, mas na acepção de inocência total. Seria tão culpado pelo crime como causador das inundações do rio Nilo ou tempestades de areia no deserto do Saara. Havia sempre alguém para sofrer a culpa dos crimes que não praticara. E, às vezes, surgiam casos curiosos, como um homem que se apresentou à Justiça dizendo-se assassino de uma mulher, dando minúcias da morte e, logo depois, a vítima, a mulher defunta, apareceu, viva, sadia declarando nunca ter estado ameaçada de morte. O Dr. Benvenuto Augusto de Magalhães Taques, presidente da Província, em sua fala à Assembleia Provincial, a 3 de maio de 1849, narra esse episódio. José Pretinho cumpriu o que o Código Criminal do Império determinava no cerimonial do enforcamento. Saiu com o padre, o juiz municipal, promotor público, escrivão, porteiro e soldados, percorrendo sua via-crucis, inteiramente repousado, como se passeasse. Chegando à praça do Peixe, onde a forca se erguia, o padre descobriu que o sentenciado era pagão. Batizou-o ali junto aos degraus da escada. Na manhã clara soava o latim ritual:
— Quid petis ad Ecclesiam Dei
— Fidem.
— Fides, quid tibi praestat
— Vitam aeternam
E José Pretinho, risonho, curioso pelo espetáculo, olhos acesos, entrava no seio na igreja na hora em que saía do mundo. Ofereceram-lhe bolos e vinho. Comeu deliciosamente, tudo quanto lhe deram.
— Quer mais! – disseram. — Se tem, quero, respondeu o desgraçado. E voltou a mastigar e a beber o vinho
tinto, num copo de vidro grosso. Subiu, sozinho, lentamente, para o patíbulo. Lá em cima, andou em torno do tablado, num leve passo. O sol banhava de ouro as águas verdes do Potengi. Na linha do horizonte azul o mar espelhava, como uma imensa turquesa ondulante. Velas brancas riscavam as ondas, partindo para a pesca, a luta, a vida. José Pretinho, perto da forca teve uma exclamação de surpresa, de encanto, de júbilo incontido:
— Ah! Daqui de cima se vêem as jangadinhas! Alguns minutos depois via perto de Deus, a extensão da Justiça dos Homens…
A casa de José Francisco, na vila de Extremoz, estava iluminada e alegre. Era a noite de 23 de abril de 1836 e havia função de casamento. Danças animadas, movimentos livres e aguardente fácil e pronta. Um dos mais airosos dançarinos era o caboclo Inácio José Baracho, médio de altura, robusto, comunicativo, bebendo bem e gritando melhor. Nessa festa, Baracho estava apaixonado pela mulata Rosa Maria, desejo velho, sempre recusado por ser a linda mulher amásia do seu sogro José Pedro. Esgotados, nas pausas da dança, os recursos persuasivos, Baracho informou que José Pedro a mandara chamar e ele devia acompanhá-la, por ser madrugada alta. Saíram os dois. No lugar Tabuleiro, perto da lagoa do Gervásio, repelido mais uma vez, Baracho abateu Rosa Maria com uma formidável cacetada que lhe abriu a cabeça.
Rápido, o facínora repetiu os golpes pelo crânio da vítima, já semimorta. Vendo-a imóvel, conspurcou bestialmente o cadáver. Depois voltou a bater no corpo, cortando-lhe o rosto, desfigurando-o com fúria monstruosa. E, calmamente, voltou à casa, com a camisa ensanguentada. Antes do dia raiar, 24 de abril de 1836, regressou ao local, montado num cavalo do sogro, e quebrou o pescoço de Rosa Maria. Pela manhã, sem mudança nos hábitos, entregou-se aos trabalhos do campo. Tinha 27 anos sadios.
Havia antecedentes na família. O pai, Marcolino José Baracho, a 22 de junho de 1823, com um grupo de indígenas de Extremoz, atacara a povoação do Porto dos Touros, procurando matar o ex-vigário de Extremoz, padre José Inácio de Brito. Não o podendo encontrar, assaltou um sobrinho do pároco, Manuel José de Morais Júnior, a quem arrebatara um jogo de pistolas, motivando processos. Apenas a 5 de maio encontraram o cadáver de Rosa Maria incorrupto. No dia imediato, 6, o suplente de juiz de paz, alferes Felipe Varela Santiago promoveu exame de corpo de delito, ouvindo os peritos Francisco Borges do Régio e Félix José da Rocha, em perícia feita no “‘cadáver morto achado de Rosa Maria, no lugar Tabuleiro, perto da lagoa do Gervásio, distrito da Campina, município de Extremoz”, José Carlos do Desterro serviu de escrivão. Instaurada a formação da culpa, depõem as testemunhas Manuel Lopes de Araújo, Manuel Inácio da Rocha, João José da Silva, Romão Feitosa e Félix Gomes. Todos descrevem o baile de José Francisco, a fome sexual de Baracho e o indicam como responsável único.
O juiz de paz julgou procedente e denunciou Baracho, mandando-o prender, a 10 de maio. Datou de Capoeira Grande, município de Extremoz. Enviado o processo para o juiz de paz da cabeça do distrito, José Teodoro de Sousa, este presidiu o júri de acusação, que achou matéria para pronúncia, em 7 de junho. O juiz de direito de Natal, dr. Joaquim Aires de Almeida Freitas, conformou-se, sentenciando a prisão e providenciando para que o promotor público fizesse o libelo, no mesmo dia. Inácio José Baracho entra na cadeia do Natal. E aí fica, esquecido. Seis anos depois, a 2 de junho de 1842, o novo juiz de direito, dr. Basílio Quaresma Torreão Júnior, promove andamento.
O promotor escreve o libelo, dando Baracho como incurso nas penas do art. 192, grau máximo, com as circunstâncias agravantes do art. 16, parágrafos 4, 6, 8, 9, 12 e 15 do Código Criminal. É promotor o dr. Brito Júnior, libelo de 14 de junho de 1842. Júri a 16 de junho. Sentença: – Conformando-se com a decisão, de acordo com o art. 192 do Código, 66 da Lei de 3-XII-1841, e 383 do Regulamento de 31 de janeiro de 1842, condena-se Baracho à pena de morte. Protesto por novo julgamento. Assina, a rogo do réu, Manuel António da Silva Torres, o possível advogado. Novo júri a 13 de março de 1844. O juiz de direito é o dr. João Paulo de Miranda e o promotor, Bartolomeu da Rocha Fagundes. Escrivão, Manuel Maurício Correia de Sousa. Pena de morte. Apelação ex-ofício do juiz para a Relação. Acórdão de 22 de outubro de 1844 julgando “improcedente o recurso, por não se haver preterido formalidade essencial”. Assina o presidente da Relação de Pernambuco, desembargador António Inácio de Azevedo. O juiz, a 17 de fevereiro de 1845, despachou que se cumprisse o acórdão. Intimados, o réu e o promotor a 18. Este era o interino João Luiz Pereira. Esgota-se o prazo de oito dias para o condenado interpor o recurso de graça. O juiz interpõe a 28 de fevereiro de 1845 e há uma apelação-crime, por parte do advogado do acusado. Novo acórdão da Relação, a 26 de outubro de 1845, confirmando a sentença. O Imperador recusou a graça. O Ministro da Justiça, José Carlos Pereira de Almeida Torres, em ofício de 16 de junho, comunicava ao Presidente da Província, Casimira José de Morais Sarmento.
Este deu, a 26 de julho, o cumpra-se e registre-se. No mesmo dia o juiz de direito informava ao juiz municipal, dr. Francisco Xavier Pereira de Brito. Na mesma data este escreveu: — “Junte-se aos autos. Cumpra-se”. E, na cópia do ofício do presidente, autenticada pelo secretário do Governo, João Carlos Vanderlei, o juiz municipal declarou: “intime-se ao réu. Marco o dia 30 de julho corrente. Cidade do Natal, 28 de julho de 1845 (a) F. Brito”. O escrivão intimou, a 29, a Baracho e ao promotor, outra vez Bartolomeu da Rocha Fagundes. O juiz municipal era o dr. Francisco Xavier Pereira de Brito. O coadjutor, padre Joaquim Francisco de Vasconcelos, começou a assistência religiosa. O comandante da força seria o tenente José António de Souza Caldas. O porteiro, Vítor António de Freitas, saiu na frente do préstito, lendo a sentença. De tudo houve certidão, na forma da lei…
Nenhum criminoso deixou lembranças mais fortes que Inácio José Baracho. Durante seus anos de reclusão, ganhou fama de cantador, sapateando magistralmente, berrando cantigas românticas e chorando amores impossíveis. Campeão de queda-de-braço conquistou admirações entre os companheiros. Duma coragem fria e contínua acima de enfraquecimentos e lástima, bravateava, sem o mais longínquo temor na face imóvel.
Seu carrasco, Alexandre José Barbosa, o matador de Ana Marcelina Clara, a Hamburguesa, era covarde e trémulo. No momento de passar a corda no pescoço de Baracho, Alexandre começou a tremer. O caboclo, que ia morrer, interpelou-o ferozmente: — “Está tremendo, Alexandre? Você quando matou a Hamburguesa não tremeu desta forma”. Arrancou o laço da mão do companheiro e ele mesmo se jugulou. Sem esperar o sinal, atirou-se no espaço, bradando para o carrasco, lívido: — “Não admito que um cabra como você me empurre…” Com o salto, a corda partiu-se e o semi-enforcado foi ao solo vivo, respirando alto. Choro da multidão, vozes de piedade. Substituem a corda. Nova laçada. Novo salto. Nova ruptura. Nova queda. Ao reganhar o patíbulo, Baracho dizia ao padre Joaquim Francisco de Vasconcelos: “… que morte agoniada…” Na segunda vez, disse nada sentir. Via uma mulher vestida de branco, nos ares, acenando. Enterraram-no na capela do Rosário. Afirmavam que Baracho aparecia em sonhos, pedindo missas, que foram rezadas, avultadamente. Durante anos e anos, um fantasma, com a corda ao pescoço, corria nos arredores da praça do Peixe, nas noites de sexta-feira.
Hoje tudo desapareceu. Restam de sua existência dramática, uns restos amarelados do processo. E, num livro da paróquia da matriz do Natal, o registro simples e trágico de sua morte: “… Aos trinta de julho de
mil oitocentos e-quarenta e cinco, faleceu da vida presente, enforcado, com os sacramentos da Penitenda e Eucaristia, Inácio José Baracho, pardo, preso na cadeia desta Cidade; foi sepultado na Capela do Rosário, encomendado por mim. E para constar fiz este assento” (a) Bartholomeu da Rocha Fagundes – Vigário Colado.
Ana Marcelina Clara morava na travessa da Aula, depois Visconde de Inhomerim, depois travessa Aquidaban, hoje o trecho da rua João Pessoa, da praça Padre João Maria à avenida Rio Branco. Velha risonha, amável, resignada, vivia sozinha, com uma cachorrinha, às vezes tendo a visita duma afilhada, a menina Balbina, que ainda vivia em 1907. A residência era antiga na cidade. Alemã de Hamburgo, Ana Marcelina ganhava o apelido que substituía seu nome. Conheciam-na todos por Hamburguesa. Casara com alemão, Simão Wilherrn Carol, já falecido em 1826 quando, um filho do casal, Carol Wilherm Augusto, se matrimoniara em Natal, a 17 de janeiro, com Ana Joaquina de Melo, filha de António Cabral de Melo e Maria da Conceição. Os recém-casados viajaram para o sul. A Hamburguesa ficou só e trabalhava para sustentar-se, fabricando doces de goma e milho, vendendo-os a preço mínimo. Sóbria, recatada, sempre em casa, com os hábitos de recolhimento, tinha fama de rica, de possuir uma mala cheia de moedas de ouro. Essa fama assinou sua sentença de morte.
Todas as madrugadas, a Hamburguesa ia ao Baldo lavar sua roupa. Quase beirando a represa, morava Alexandre José Barbosa, soldado, no fim da rua dos Tocos, hoje 13 de Maio. Na madrugada de 13 de fevereiro de 1845, a Hamburguesa, atendendo a um chamado de Alexandre, voltou-se e foi derrubada com uma pancada, sacudida, morrendo, n’areia do Baldo. Alexandre sufocou-a, enterrando-lhe a face no barro solto das margens. Nesse momento, como era seu costume, passava a cavalo, o vigário Bartolomeu da Rocha Fagundes que não viu, mas foi visto pelo assassino. Morta Ana Marcelina, Alexandre carregou o corpo para sua casa, a poucos passos e escondeu-o durante o dia. O sogro do matador, o açougueiro Maximiniano da Silva, ajudou-o a disfarçar os vestígios do crime, sob coação. Na noite deste dia, Maximiniano e Alexandre amarraram o cadáver a um pau, ligando-o ainda a um tronco, e atiraram-no ao Baldo. No transporte fúnebre, Maximiniano, aterrado, duas vezes caiu. A mulher do criminoso, Josefa Maria da Conceição, guardou, por amor e medo, sigilo inviolável. Desaparecida a defunta, Alexandre, tendo as chaves da casa, abriu-a e, calafetando os claros da janela e porta, procedeu uma busca paciente e completa. Quase nada encontrou. Apenas patacões de prata, anéis baratos, maravilhas insignificantes pela posse das quais perderia a vida.
A 16 de fevereiro boiou o cadáver. Já corriam boatos fúnebres. E houve uma curiosidade. O menino António José de Souza Caldas sonhou, na manhã do assassinato, todas as cenas ocorridas no Baldo e as descreveu. Enterraram a Hamburguesa no mesmo dia 16. A 18 Alexandre foi preso. O processo começou, com formalidades, pesquisas, depoimentos. Advogava o acusado um dos grandes tribunos da época, o dr. Leocádio Cabral Raposo da Câmara. Pronunciado no artigo 271 do Código Criminal pelo delegado de polícia Joaquim Francisco de Vasconcelos a 7 de março, a 7 de junho o júri, presidido por José da Costa Pereira, condenou-o às penas do artigo 271, grau máximo. O soldado João Francisco de Freitas, que sabia do crime, Maximiniano da Silva e Josefa Maria da Conceição, foram absolvidos.
A Relação de Pernambuco julgou improcedente o recurso ex-offí-cio, em acórdão de 21 de março de 1846. O Imperador recusou a graça, comunicada pelo Ministro José Joaquim Torres Fernandes a 29 de setembro. O juiz de direito, dr. Cláudio Manuel de Castro, recebendo a informação da presidência oficiou ao juiz municipal. Este marcou a execução para 31 de outubro de 1846.
Alexandre tinha 39 anos. Mulato forte, falador, com facilidade de expressão e de gestos, defendia-se
admiravelmente. Mas as provas eram infinitas. Ao ouvir a sentença de morte chorou. Soldado do corpo de polícia da Província, era de antecedentes maus, tendo roubado uma cabra, que lhe custara ir pagar oito mil-réis. Não deixou recordação notável de audácia mas de ferocidade. Indicado para carrasco de Inácio José Baracho, tremeu tanto, ao pôr o laço ao pescoço do criminoso, que este teve ainda coragem de zombar de sua fraqueza. Marchou para a forca arrastando-se amparado pelo padre Joaquim Francisco de Vasconcelos, com o aparato legal, tropa dirigida pelo alferes Miguel Porfírio de Souza Caldas. Aceitou o bolo e engoliu, dificilmente, o vinho oferecido. No alto do patíbulo disse para a multidão: “Rogo a todos que me vão assistir a agonia que rezem uma Salve Rainha e peçam à Nossa Senhora para me dar uma boa passagem para o outro mundo”. Serviu de carrasco o sentenciado Francisco Lourenço Cabral. Já com a corda em volta da garganta, Alexandre gritou, de súbito: — “Espere, camarada…” Chamou o padre com um gesto e confidenciou algumas frases, ao ouvido. Depois empurraram-no para a morte. Nove horas da manhã de 31 de outubro de 1846. Seria o último enforcado…
Félix Francisco da Silva, proprietário em Capela, no Ceará-Mirim, então município de Extremoz, era homem muito estimado no Natal. Pertencia à sociedade maçônica Sigilo Natalense e andou um dia inteiro, para cima e para baixo na cidade, ostentando a faixa e insígnias do seu grau, numa desnecessária e pitoresca demonstração de solidarismo doutrinário. Em março de 1840, voltando do Natal, o tenente Félix, da Guarda Nacional, chegou à sua residência na povoação de Capela e mandou preparar a ceia de peixe. Debruçou-se na meia-porta da cozinha, olhando para a noite. Debaixo de uns pés de pimenteira, escondido no escuro, desfecharam um bacamarte. O tenente Félix caiu, o peito crivado de balas, já morrendo. Em casa apenas duas mulheres e um menino estavam para gritar, pedindo o impossível socorro. Enquanto velavam ao cadáver, aguardando o amanhecer para o enterro, notaram a ausência de Valentim José Barbosa, empregado da confiança do morto, familiar e querido. Valentim desaparecera, reunindo suspeitas e foi perseguido como acusado pela opinião pública da Capela.
Em Natal a notícia emocionou a todos. A Sigilo Natalense, em sessão de 21 de março, deliberou “que se fizessem todas as diligências para serem capturados o assassino e cúmplices, gratificando-se àquelas pessoas que particularmente fossem encarregadas das prisões dos criminosos na morte do nosso caro Irmão e que depois de recolhidos os cúmplices à Cadeia do Crime desta Cidade fossem gratificadas as pessoas que os prendessem com a quantia de cem mil-réis repartidamente”. Não encontrei o processo de Valentim José nem mesmo o processo do recurso da graça. Uma versão popular dizia crime passional.
Assim registrou Henrique Castriciano em 1907 e eu em 1924, ouvida ao professor Panqueca, Joaquim Lourival Soares da Câmara. A mulher do tenente Félix da Capela, como era conhecida, estava apaixonada por Valentim José. Este, nos depoimentos, dissera ter abatido o patrão com um bacamarte de pontaria dormida, carregado de balas. Estava pago. Recebera oitenta mil-réis, um chapéu de palha e um cavalo chamado Aroeira. Não tinha culpa alguma. Era um negócio como outro qualquer. A responsável seria a mandante, a viúva. Num tomo de registro de correspondência do Departamento de Segurança encontrei cópia do ofício do chefe de polícia e juiz de direito da Capital, como era de lei, Basílio Quaresma Torreão Júnior, datado de 14 de abril de 1840, comunicando ao presidente da Província que “Valentim José, assassino do major Félix Francisco da Silva, estava recolhido à Cadeia do Crime em Natal”. A Sigilo Natalense mandou pagar o que prometera, discutindo-se em sessão de 22 de abril. A 3 de junho auxiliava com 50$ a Joaquim Francisco da Silva, “pai do nosso finado irmão Bolívar que há pouco foi assassinado”. Bolivar era o nome heróico do tenente ou major Félix. No Dia de Finados, 2 de novembro, a Sigilo Natalense celebrou um cerimonial fúnebre em homenagem a Manuel Teixeira Barbosa, que falecera no ano
anterior, e a Félix Francisco da Silva.
O chefe de polícia assim descrevia o acusado: “Valentim José, filho de Cosme Barbosa, morador no Bom Jesus do termo de Santa Ana do Matos, pardo claro, baixo de corpo, cabelos pretos e cacheados, com todos os dentes na frente e bastantemente alvos, e bem parecido”. O dr. Torreão Júnior interessara-se vivamente pela captura, indo ao Ceará-Mirim. Aparece a segunda versão, com elementos documentais, não citados na crônica oral do povo mas registrados na correspondência oficial. Acusado como mandante e autor moral do
crime não é a esposa do tenente Félix, mas um seu cunhado, António Pita de Sá. Em 16 de abril de 1840 esse António Pita de Sá estava na cadeia e foi indiciado e pronunciado como mandante do crime.
Em maio os presos da cadeia do crime no Natal abriram um rombo na parede e iam fugindo todos. Mandaram consertar a parede e construir uma guarita na retaguarda do edifício, para melhor vigilância. A guarita custou 17$000. Os amigos de António Pita de Sá desenvolveram ativa propaganda em favor do pronunciado. Chegou a cabala a tal ponto que Basílio Quaresma Torreão Júnior, que presidia o Tribunal do Júri, oficiou ao presidente da Província, em 29 de agosto de 1840, sugerindo não submeter o acusado a julgamento por sabê-lo de antemão absolvido. O presidente da Província, dom Manuel d’Assis Mascarenhas não aceitou a ideia. Torreão Júnior, em 1° de setembro, comunicou ter transmitido a presidência do júri ao juiz municipal do termo, pretextando “achar-se incomodado de um fortíssimo ataque de defluxo”. Creio que, vistos e relatados os acontecimentos, António Pita de Sá fora para a rua, tranqüilo e limpo de culpa. Valentim José respondeu a processo e foi condenado a morte. O Imperador não lhe concedeu comutação e marcou-se o enforcamento.
Marcada a execução surgiu uma surpresa. Nenhum sentenciado queria ajudar a Lei, matando Valentim. Os quatro mil-réis não tentavam. O Governo ofereceu a fabulosa soma de quarenta mil-réis. A recusa continuava. Não era compaixão nem solidariedade. Estava na cadeia, cumprindo um resto de sentença, um valentão famoso, jogador de faca, célebre pelo número de lutas e de ferimentos distribuídos generosamente. Era o sapateiro remendão Trajano Pé de Couro. Amigo íntimo de Valentim José, Trajano Pé de Couro ameaçara de morte quem servisse de carrasco ao seu companheiro. O Governo dobrou a parada. Oitenta mil-réis — “Recebe mas não come..:” rosnava mestre Trajano. Os presos encolhiam-se, amedrontados. Consultas foram e vieram entre autoridades. Deliberou-se solução melhor e mais barata. Valentim José Barbosa, na manhã de 7 de agosto de 1847, foi fuzilado por uma escolta militar na campina da Ribeira, no fim, perto dos morros.
Foi o último justiçado em Natal.
Fonte: 
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: RN Econômico, 1999.