Francinaldo Rafael – Um olhar sobre as traduções bíblicas

Escrita durante muitos séculos e produto de muitas mãos, a Bíblia é chamada de “a palavra de Deus”. Mas é necessário critério,  racionalidade, contextualização na leitura dos texto  nela registrados, para evitar equívocos de interpretação.

O juiz de direito Haroldo Dutra Dias, formado em língua grega clássica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em hebraico pela União Israelita de Belo Horizonte, especialista em paleontografiacrítica textualaramaico e francês, é autor de uma tradução do Novo Testamento para o português. Na referida obra, concentra esforços na recuperação do sentido original das palavras, expressões idiomáticas, etc., numa espécie de arqueologia linguística e cultural.

Em seus estudos, Dutra nos alerta sobre os cuidados na história das traduções bíblicas. Vejamos: o Velho Testamento foi produzido por hebreus, que falavam o hebraico. E o hebraico não foi sempre o mesmo ao longo de mil anos, tal qual nossa língua portuguesa desde a carta de Caminha até os dias de hoje. Há livros escritos em hebraico antigo, outros já no mais moderno.

Outro ponto a ser considerado é que por volta no ano 700 a. C., o povo hebreu foi escravizado pelos babilônios e em torno do ano 500 a.C, já levados para a babilônia, começaram a esquecer o hebraico e passaram a falar o aramaico que era a língua dos babilônios. O livro do profeta Daniel (hebreu), por exemplo, foi escrito a maior parte em aramaico. Quando voltaram para a palestina, pela sucessão de gerações, a maioria não sabia ler o hebraico.

Por volta do ano 200 a.C, surge o império de Alexandre, O Grande. Conquista tudo ao redor do mediterrâneo e dissemina a língua grega, o idioma internacional da época. Nesse período, os sábios de Israel fizeram uma tradução do Velho Testamento para o grego.

Avancemos ao tempo em que Jerusalém caiu sob o domínio dos romanos, cuja língua era o  latim.

Eis a mistura na época de Jesus, salienta Haroldo Dutra: o povo que morava na Galiléia e em Jerusalém, falava na linguagem popular o aramaico. Quando entrava na sinagoga, o texto bíblico era lido em hebraico e havia as traduções livres para entendimento. Os soldados romanos falavam latim. E a comunicação com os estrangeiros que chegavam era feita em grego. Foi nessa pluralidade de linguagens que viveram os primeiros seguidores do Cristo. Daí, todos os manuscritos do Novo Testamento estar escritos em grego. Como Paulo de Tarso disseminou o cristianismo mundo afora, se não tivesse grafado desse modo, haveria dificuldade de entendimento.

No ano 400 d.C, as igrejas romanas quiseram começar a dominar as outras igrejas cristãs. Foi solicitado a Jerônimo que fizesse uma tradução de toda a bíblia para o latim. Era a língua oficial do império romano, e o cristianismo passou a ser religião oficialmente tolerada por ele. Jerônimo lançou mão do original hebraico, texto em aramaico,  em grego, em latim antigo e fez uma tradução para o latim moderno, a Vulgata. Nessa tradução, muito da riqueza da obra se perdeu. Então a igreja adotou-a como a Bíblia. Diz Dutra: “Aqui começou a maior deturpação da história do cristianismo. Não por culpa de Jerônimo, mas pelo que fizeram com a Vulgata Latina”. E cita um exemplo: existia na cultura hebraica “Sheol”, o lugar da alma dos mortos. A Septuagenta traduziu para “hades” que tem outra conotação: era um espectro da alma; e Jerônimo traduziu pelo advérbio de lugar, “infernos”, o que está embaixo. E com a fertilidade da imaginação, chegou-se ao inferno.

Em apenas um exemplo citado nessa análise trazida por Haroldo Dutra, percebemos a facilidade de equívocos na interpretação da bíblia. Daí a necessidade de um estudo mais aprofundado, para evitar-se julgamentos e condenações em nome de Deus.