Escola Sem Partido: mais reprodução X menos reflexão

 Por Nestor Gomes Duarte Júnior

Assistente Social, Especialista em gestão pública, mestre em Serviço Social e doutorando em Serviço Social pela UFPE.

 

Se concebemos a educação formal como responsável por garantir a continuidade da cultura, valores e a identidade de um povo, são as escolas e universidades o campo de realização dessa tarefa nobre.

Assim, temos por premissa que os processos educativos estão intrinsecamente relacionados com a totalidade da vida social, são instâncias nas quais os sujeitos produzem e reproduzem conhecimentos e valores sobre seus cotidianos, numa simbiose entre a autonomia de cátedra do professor e seus ideais, e a autonomia de pensamento dos estudantes, com sua formação de base social, comunitária e familiar.

Contudo, há um movimento de um segmento social brasileiro em defesa de maior regulação dessa autonomia dos professores, expresso na tentativa de aprovação do Projeto de Lei nº 7.180/2014 da Câmara dos Deputados, cujo teor prevê a inclusão na Lei de Diretrizes de Bases da Educação (LDB) do Programa Escola Sem Partido. Trata-se do estabelecimento de novas regras para atuação de professores, a lógica é coibir a influência dos mestres sobre seus discentes nas pautas de sexualidade, valores morais, e vivências religiosas.

Em síntese, o projeto é algoz da liberdade da prática docente nas escolas e universidades brasileiras, com o subterfúgio de coibir-se a “doutrinação ideológica” dos professores sobre os seus discentes. (Os mais açodados falam em acabar com a imposição de uma cultura que afronta aos valores da família tradicional brasileira com base em “ideologias esquerdistas”).

Ora, vejamos, é impossível falarmos em sujeitos e/ou propostas “neutras” ou “neutralizantes” na produção e reprodução da vida social, pois é a diversidade de pensamentos algo natural em uma sociedade democrática, se você não se identifica com as ideias do campo de direita, se identifica com a esquerda ou com as pautas mais ao centro.

Portanto, se o professor se vincula a um ou outro ideal de organização social, isso certamente aparecerá na sua estratégia metodológica, contudo, o processo educativo é composto por dois polos ativos, e o outro polo, que é o estudante, tem autonomia e liberdade para discordar, se contrapor e construir um diálogo franco e propositivo com o seu professor.

Se a realidade nos apresentar algo diferente do que descrevemos acima, não será possível definirmos a escola como campo de educação e sim de instrumentalização/mecanização da sociedade, pois de lá sairão pessoas meramente instruídas para o mercado, subsumindo-se a formação do senso de humanidade e pertença à uma coletividade, em detrimento do princípio de reprodução de fórmulas, regras e métodos tangíveis à objetividade das relações de mercado.

Trata-se de tentar eliminar o exercício da capacidade reflexiva de professores e estudantes em pleno processo formativo. Imaginemos uma escola com suas salas de aula em plena atividade, em uma determinada sala o professor aborda o “empreendedorismo como capacidade necessária ao desenvolvimento da sociedade”. Em uma segunda sala o professor fala “da consciência para preservação do meio ambiente como estratégia de preservação da espécie humana”. Na terceira sala a professora debate acerca “da epidemia das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s), as consequências e formas de prevenção”. Em outra sala discute-se “o protagonismo das religiões afro-brasileiras para a valorização da cultura brasileira”.

São quatro situações em que se lança mão de fatos e elementos históricos, reais, mas, que transitam entre valores sociais, culturais, morais e religiosos da vivência dos professores e dos estudantes, são temas transversais à formação da identidade das pessoas em sociedade.

Fomentar debates com essa entonação em dias atuais é extremamente comum no contexto das escolas e universidades brasileiras, pois são expressões das problemáticas sociais, que chegam às instituições de ensino. Com a aprovação dessa nova lei, os quatro docentes seriam enquadrados e/ou proibidos de seguir tais diálogos, e o que é mais grave do processo, é a expectativa da enorme censura que se alvoroça, em grupos sociais conservadores, para recair sobre o exercício da atividade docente, pois seremos obrigados a potencializar a capacidade de reprodução de comportamento e de ideias previamente definidas, em vez de instigarmos os nossos estudantes a questionarem o mundo, as coisas e as pessoas.

Portanto, projetos de lei dessa natureza tendem cada vez mais desumanizar os humanos, pois é da nossa própria essência questionar a realidade, dialogar em contrapontos de ideias, enfim, aproveitar os dissensos para amadurecermos e sermos protagonistas não só da nossa própria história particular, mas, legatários dos destinos da humanidade, e é nessa direção que se reflete a necessidade de continuar assegurado o direito a cátedra livre e os debates francos nas escolas e universidades brasileiras.