ENSAIO FERNANDO PESSOA II – As múltiplas pessoas de Fernando

As múltiplas pessoas de Fernando – Por Sérgio Linard – Graduando emLetras UFRN

 

Multipliquei-me para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-me.

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. 

Álvaro de Campos

 

Fernando Pessoa bem poderia ter o seu sobrenome pluralizado e passar a ser reconhecido por Fernando Pessoas. O conhecimento, a primazia, e a inovação de tal poeta não se limitaram às cercas impostas pela única vida com que somos agraciados no ventre de nossas mães.

Adepto de teorias e ideias modernas, Pessoa decide romper com a tradição sem abandoná-la. Cria, dentro de sua produção artística, personagens não apenas com um nome, mas também com todo um mapa astral, características físicas, psicológicas e dicções literárias próprias. Não falamos de simples pseudônimos, falamos de heterônimos.

Para um, viver por viver é suficiente. Para outro, a fragmentação do ‘eu’ que é viver. Para o terceiro,a razão prevalece à sensibilidade. O ‘pai’ dos três vivia em um processo constante de busca de si mesmo.

Romper com a tradição é uma tarefa desafiadora para todo e qualquer artista. Olhá-la nos olhos e dizer que não dará continuidade ao seu trabalho, é, além de ousado, arriscado. Inovar quando muito já se foi feito é perigoso e muitos falham nesta tentativa.

Fernando Pessoa não falhou.

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A moderna obra de Pessoa trouxe para um Portugal em plena crise econômica e política o inesperado sabor da crítica à realidade caótica, por meio de humor, ausência de rimas, estrofes livres e linguagem coloquial. Toda esta inovação no sistema literário português só foi possível mediante o trabalho do poeta Alberto Caeiro que recorreu, ainda, à simplicidade e ligação com a natureza para expressar suas percepções do sistema instituído e da vida.

Ao encontrar-se com a tradição o poeta recorre à quebra de paradigmas historicamente instituídos, para dar continuidade à produção literária de cunho universal. A compreensão da obra de Fernando Pessoa prescinde, portanto, um estudo de todos os campos da criação ideológica humana, como defende Medviédev (2016), ao entender que a literatura é marcada por traços ideológicos que perpassam todos os seres humanos.

Por acreditarmos que a obra literária é um “exercício de reflexão e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do homem e do mundo” (COMPAGNON, 2012), destacamos que as múltiplas pessoas de Fernando são, na verdade, uma resposta a esta necessidade da literatura de expressar os vários sujeitos humanos, bem como de proporcionar os dinâmicos entendimentos que vivemos a depender da situação em que nos encontramos. Seja como um médico, um pastor, ou um engenheiro, os dilemas diante da vida serão os mesmos, as perspectivas é que sofrerão mudanças. Eis aqui a grande inovação do moderno Fernando Pessoa: usar-se de apenas uma vida para analisá-la como se fossem várias.

As literaturas modernas e contemporâneas dialogam com a tradição constituída. Ora para reforçá-la, ora para refutá-la. A obra dos vários Fernandos Pessoas assim o faz. Ora inova com um Alberto Caeiro, ora mantém-se tradicional com um Ricardo Reis. Aquele, com menor formação acadêmica do que este, é considerado o professor dos demais, explicitando a quebra de paradigmas que Pessoa se propôs a fazer. Onde, então, se observa a tradição da obra poética do autor em questão? Nele mesmo.

Fernando Pessoa, ortônimo, é os mais conservador dos poetas criados por ele. A preocupação com a métrica e o típico tema da insatisfação da alma humana explorada pelos poetas desde Homero, são exemplos de características que fazem do ortônimo o poeta mais conservador de todos.

A principal obra de Fernando Pessoa, ele próprio, Mensagem, é uma nítida materialização daquilo que a teoria literária defende por meio de muitos autores. Medviédev (2016), por exemplo, entende que: na história da literatura, manifesta-se uma tendência para apoderar-se da realidade concreta e específica e da historicidade dos fenômenos literários, sem perder de vista, ao mesmo tempo, os princípios gerais e os vínculos com uma visão de mundo unificada. (p.46)

Essa tendência em relacionar o local com o universal, uma característica das obras literárias de qualidade, está muito presente em Mensagem. Ao retratar a história do povo português com tanta maestria quanto seu antecessor, Camões, Fernando deixa para a história da humanidade uma rica obra de valores estéticos e sociológicos que cumprem a função de humanização da literatura defendida por Cândido (2004), demonstrando a responsabilidade criativa do poeta português que se dedicou à inovação sem esquecer a importância da tradição, tampouco tornando sua obra um simples “panfleto” sobre a sua terra natal.

 

E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

 

Uma vida não foi suficiente para Fernando Pessoa. Ela não o é para ninguém. Vivemos como se eternos fôssemos, morremos como se nunca tivéssemos vivido. É a arte, portanto, que supre a intrínseca necessidade humana de ser mais de um, de ser infinito. Campos, Caeiro, Reis e Pessoa, são, portanto, o espelho de Fernandos, de Marias, de Luísas e de todos aqueles que infelizes são porque apenas uma vida têm.

 

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…

Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…

Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,

Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir

E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz

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Referências Bibliográficas 

CÂNDIDO, Antônio. Vários escritos. 4 ed. São Paulo; Rio de Janeiro. Duas Cidades: Ouro Sobre Azul, 2004, p. 169-191.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

MEDVIÉDEV, PávelNikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. 1ª ed. São Paulo: Contexto, 2016.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. São Paulo: Cia das Letras, 2007.