Clauder Arcanjo: Pílulas para o Silêncio (Parte CXLV)

Colóquio entre os rios jaguaribe e acaraú

Para o poeta Luciano Maia

Terra que viu descer o sol da morte
sobre a geometria das ossadas.
E em Licânia, Luciano, as ribeiras estão infestadas de espectros. Ossadas brancas que se fizeram pedras lisas de tanto rolarem de dor nas cabeceiras do Acaraú. Teu Jaguaribe, poeta, tem o sol da morte, e o meu rio, o cemitério das ossadas.

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A água
imita
a clara
cantiga
da chuva (…)
Em tuas cabeceiras, Jaguaribe, ouço as festas dos esponsais das enchentes. Alegria de rio que se faz caudaloso quando prenhe das nuvens, esquecido das trevas da seca que te calcinam e te fazem deserto.
Nas nascentes do Acaraú, vate Maia, escuta-se o nascimento de uma deusa de longas cabeleiras e de olhos verdes ou cinzas, a depender da paixão dela pelo encanto do tempo. Quando ela se apresenta de olhar esmeraldino, os aluviões de Licânia abençoam-se com o seu pranto mítico. Quando desfila pelas madrugadas quentes com a pupila dos olhos cinza, ai de nós, seus (in)criados, pois a terra ressumará de choro e de fastio. A partir desse dia, nenhuma lágrima correrá nas areias do Acaraú, e este se fará rio-deserto, fatal destino.

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O Jaguaribe era solto
como um fogoso alazão.
Conhecia o mar revolto
e a revolta do sertão.
O Acaraú, rio das garças, só corria em calado de profundezas quando o caburé piava choco, a mulher-sem-cabeça solfejava hinários de lamúrias. O sertão, então, anunciava, em trovões, o fausto torvelinho de prata, a amasiar-se com a fartura, o aguaceiro e o desatino.
Mas, se o Acaraú se revoltava contra os ribeirinhos, Luciano, ai de nós!: as vazantes secavam e sumia o leite dos meninos. Nas cabeceiras, longas e áridas, apenas a fartura do desfilar da colheita dos incontáveis anjinhos.

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E sobre os pés andejos de viagem
o humilde, o sóbrio, o penitente jegue
é dessa história a grande personagem.
Apenas uma personagem há de unir os nossos rios, Luciano Maia: a sobriedade, a candura e a calma do jegue andarilho. Ser que dura como a seca no Ceará, bicho que perdura como a humildade de nossa gente, alimária que se penitencia toda vez que os Céus lhe(nos) são mais inclementes.

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O rio Jaguaribe traz canções
ainda não cantadas pelo vento
(estórias ancestrais), traz emoções
tangidas em segredo pelo vento.
Não, Luciano, o meu rio anda calado à minha frente. Só se ouve sua voz na memória noturna do pensamento. Um porfiar silente de ásperas dores, de relhos dolentes, de borrascas florescentes e de açoites acontecidos.
De quando em quando, jura-me Acácio, o crédulo descrente de Licânia, dá-se o farfalhar harmônico das carnaubeiras e das folhas duras das oiticicas, e daí exala o bafio pestilento da rosa adusta, a ferir as narinas dos homens que teimam em banhar-se no leito do Acaraú, inundado de morte e de vento.
O Aracati, em fins de tarde, conduz-me o assovio de um sedento canto morno; enquanto eu, vergado, fico (presságio, Acaraú?) a ouvir-te, em funeral, exéquias de ribeirinho passamento.

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O tempo, ó rio, já não te proíbe:
banha os pés do teu Vale, Jaguaribe!
O oceano, Atlântico desmesurado e espumoso, juntou as águas dos nossos rios-mundos, Luciano. E percebo, frente a Fortaleza, o navegar tímido das nossas dores ancestrais. Antes proibidas de se apresentarem, hoje rumorejam cavalgantes, céleres e ufanas, nas crinas brancas, no vale verde dos mares cantadores.
E nós, filhos (i)legítimos do sertão, exilados aqui, somos tão só dois malditos rebeldes tabajaras cantadores, na ânsia de rimar inesgotáveis mananciais de trovas infantes, heranças das nossas províncias, impérios dos sinos e dos bacamartes, do vento vesperal e das águas bentas celestiais.
Perdão, eu resumo: O mar nunca vai virar sertão. Salvem (e cantem) o velho Jaguaribe; salvem (e cantem) o esquecido Acaraú, meus irmãos!

Clauder

Clauder Arcanjo
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