Clauder Arcanjo – Paráfrase incauta

Certa tarde, navegando à toa pela internet, encontro uma página com uma série de “máximas” atribuídas a Carlos Drummond de Andrade. Tocado pela candura do crepúsculo que, lá fora, banhava o céu, li e reli-as, na tentativa de decorá-las. Confesso que não consegui. Mais tarde, voltei a insistir; quando dei por mim, pobre e incauto cronista provinciano, eu estava parafraseando o vate itabirano.

Tomo a liberdade, caro leitor, depois desta dispensável e modorrenta explicação, de apresentar-lhe o resultado desse jogo, ignóbil diálogo. Diria até, inútil; mas me perdoe, como Graciliano Ramos, tenho em mim “a vocação absurda para as coisas inúteis”. Sim, nasceu (como, às vezes, acontece em solo árido) um arremedo de conversa entre o mestre e mim, quando, naquele dia, dormi.

— Tudo é possível, só eu impossível.

— Tudo é impossível, só eu, ainda mais, impossível, meu caro Drummond.

— Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer.

— Há certo gosto em fingir pensar sozinho. É ato banal, como nascer e morrer — arrematei.

— Precisamos educar o Brasil — bradou Drummond.

— Precisamos (re)provar o Brasil — asseverei, inquieto.

— Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.

— Teu verso, Carlos, é minha cachaça. Todo mundo tem direito a uma boa cachaça mineira.

— Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante — confidenciou-me, com todo o sentimento do mundo.

— Há livros escritos para abrir espaços vazios na estante — fuzilei, sobraçado com Alguma poesia.

— A liberdade é defendida com discursos e atacada com metralhadoras, meu caro Clauder Arcanjo.

— A liberdade é defendida com discursos e atacada com negociatas fuzilantes, Drummond.

— Tristeza de ver a tarde cair como cai uma folha… — ele suspirou; como se palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco.

— Tristeza de ver a ética cair como cai uma floresta… — eu suspirei, melancólico, como se palmilhasse uma estrada de Licânia, esburacada, e no fecho da tarde um sino louco.

— Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou — incomodou-se.

— Se meu verso não deu certo, foi meu ouvido que o obrigou — desculpei-me, antipoeticamente.

— Há muitas razões para duvidar e uma só para crer — alegou o mestre de “José”.

— Há muitas razões para duvidar e uma só para descrer — ajuntei, descrente.

— Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.

— Tenho apenas duas mãos e o ressentimento do mundo — admoestei-o, intrometido.

— As dificuldades são o aço estrutural que entra na construção do caráter.

— As banalidades são a dinamite estrutural que entra na desconstrução do caráter — intempestivamente cutuquei-o.

— Depressa, que o amor não pode esperar! — confidenciou-me, como se tomado pelo medo, “o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,/ o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas…”

— Depressa, que o ódio não pode despertar! — sussurrei.

— Meu verso é minha consolação.

— Meu verso é minha admoestação — testemunhei, como se houvesse uma pedra no caminho.

— A poesia é incomunicável — professou, enquanto ele assistia ao desfile de tantas pernas: pernas brancas, pernas pretas… O homem atrás do bigode, concluí, é sério, simples e forte.

— A poesia é incomunicável… e, alguma vezes, intratável. Em especial, quando ela foge por entre as minhas mãos de vidro, Drummond.

— Que o poeta nos encaminhe e nos proteja.

— Que você nos encaminhe e nos proteja.

Pouco depois, acordei daquele transe peripatético. Suado e espantado, eu resolvi novamente dormir; não sem antes ajoelhar-me e clamar aos deuses da Poesia: “Por que Deus permite que os sonhos vão-se embora?”

Clauder Arcanjo