Clauder Arcanjo – O parto do silêncio

A cria da madrugada é o parto do silêncio.

Não sei se quero ficar aqui. Esta cidade está amigada com a pressa, e eu, há tempo, me divorciei de tão ladina amante. Melhor, falsa amante.

Logo sairei pela mata afora e ficarei comigo mesmo. Sim, sozinho. Sozinho com o meu eu, acompanhado dos meus espectros, fazendo hora com os meus fantasmas interiores. Estes, sim, leais companheiros.

Você me olha com sua cara de espanto. Calma, eu vou lhe explicar (se é que cabe explicação para as decisões da alma) acerca de tudo que vem acontecendo comigo nos últimos anos. Ou seria nas últimas décadas? Sei lá, quando passa, tudo recende a bafio da esquina última.

Pois bem, quando jovem eu adorava a companhia de gente. Muita gente; rodeado de barulho, gritos e festas. Nem dava bola para o silêncio das coisas em minha volta, só dava ouvidos para a algazarra da “felicidade”. Sim, aspeei tal palavra de propósito. Traquinas, ela se revelou, com o passar dos outonos, uma tremenda ironia.

Entrando na casa dos quarenta, eu passei a gostar de fugir; dei para me flagrar solitário, dobrando o vazio no colo da tarde, soletrando o nada no cocuruto das horas tardas. Ensimesmado com a vagareza da madrugada, acordava sorrindo begônias nas alvoradas da província.

Quando cinquentão, encostei o inglês e o espanhol, reparando no solfejar dos homens nativos. Espichando algumas sílabas, mascando algumas consoantes, rimando riso com seus incisos de gente simples, gente do povo. Eu, que adorava desfilar com os cânones literários, flanava horas e horas, de mãos vazias e de peito aberto, por entre a fala do povo. “Geringonça, bacurau, lesado, amancebado, filho de quenga, varapau, baitola, chibiu, carniça, chuvisco de engorda, café donzelo, inté, lacraia, zica, pamonha, urtiga de sogra, vale de afogado, zé ruela, encosto de condenado, rameira, goela, quenga, guardião de fossa…”

Fala do povo, patrimônio do povo, joia do povo. “Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um / vocábulo” — lembra-nos Bandeira. Manuel Bandeira do Brasil.

Porém, creia-me, nem Bandeira me seduz. Hoje, eu quero o parto do silêncio; com suas vacâncias, com seus indecifráveis ganidos e enigmas, com o bafejo de suas idiossincráticas melodias. No arpejo do vazio, acredito, há de nascer algo que floresça tão branco e revelador quanto o alumbramento do nada. Ofertando a intenção da paz no alvo lençol do firmamento, pasmo pelo anúncio de mais um novo dia. De uma certa forma, também, filho de mim.

Assim seja, amém.

Não sei se quero ficar aqui. Esta cidade está amigada com a pressa…

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]