Clauder Arcanjo – O ANO BOM DE COMPANHEIRO ACÁCIO

O fim do ano se aproxima. Corro com as horas e, confesso, não sinto saudade deste ano já velho. E revelho, creia-me, caro leitor.

Cansado dos noticiários pejados de desgraça e de más notícias, resolvi, há dois dias, enfiar a cara por entre as ruas e becos da nossa cidade. Em busca do inaudito, do inopinado e do surpreendente, como dizia um velho escriba de província.

Parei na cafeteria do Rafael Arcanjo e senti, nos seus olhos, um quê de rabugice ainda mais pronunciado. Pedi o meu café expresso e tentei entabular uma conversa amena, porém percebi que o sujeito estava mais para briga do que para o comércio. Paguei a conta e saí para a manhã ensolarada.

Ao dobrar a esquina, uma voz:

— Você por aqui?! Julgava-o nas praias, regado a champanhe e tangido pelos eflúvios do caviar.

Era o Companheiro Acácio, com o seu característico acento de ironia, zombaria e mofa.

— É você, seu filho de uma…?

Troquei a palavra de baixo calão por um abraço apertado naquele amigo cinquentão.

Não sei por que, no entanto sempre guardo um carinho todo especial por esse rabugento, provinciano de plantão e de carteirinha.

Silentes, caminhamos algumas quadras. De quando em vez, alguém anunciava, aos berros e aos gritos, uma nova promoção “imperdível”. Não conseguíamos dar três passadas sem esbarrar nos camelôs com seus sacos repletos de quinquilharias.

— Veja, meu rei!, esta é a mais nova invenção dos chineses: um telefone celular com ligação direta para o comando da operação Lava Jato — atalhou-nos um deles, com a boca cheia de dentes e as mãos sedentas por cobre.

Companheiro Acácio percebeu o meu mal-estar. Sabia-me petroleiro, bem como do enorme carinho e zelo que sinto por nossa petroleira, empresa que foi vítima dessa sequência de golpes baixos, num conluio entre maus políticos e péssimos diretores.

Pouco à frente, o RustCafé nos socorreu e nos abrigou. Sentamos, pedimos uma água mineral e dois expressos.

O silêncio posto sobre a mesa, fomos salvos pela presença de uma poetisa da nova geração. Sobraçada a Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, a jovem escritora sentou-se à mesa, passando a descrever-nos o seu alumbramento com tão belo livro:

— Uma gema, uma preciosidade! Quanto tempo, amigos, eu passei longe de Raduan. Não sabia da existência deste magistral romance!

Sem nos dar tempo para contra-argumentar, ela foi logo abrindo o tomo e lendo, em voz alta, uma das passagens de Lavoura arcaica: “… e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ — não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’.”

Raduan quebrou o silêncio daquela manhã, enterrando qualquer possível desconforto que pudesse turvar nossos dias, e passamos a falar de uma nova lavoura, torcendo que o Ano Bom nos trouxesse uma dadivosa colheita de coisas belas e sublimes.

— Sim, parafraseando Dostoiévski, só a Beleza e a Arte salvarão este mundo — arrematou o Companheiro Acácio, a brindar o novo ano com seu cálice de água mineral, com gás.