Clauder Arcanjo: Mulheres Fantásticas (XVI)

Mulheres fantásticas (XVI)

 

A Mulher Nuvem

 

Clauder Arcanjo

 

O dia estava quente. As paredes da casa pareciam suar. Melquíades, inquieto e tenso, mordia os fios do bigode ralo, reunindo coragem para entrar no quarto. Juntando os fiapos de decisão, resolver bater à porta:

— Meu céu?!…

Enxugou a testa, apurou os ouvidos, mas nada de resposta.

Deu mais uma volta na sala, alisou a testa larga e deu pelo céu desprovido de nuvens. Engoliu a seco, prevendo a longa e sofrida noite.

Melquíades aproximou-se, mais uma vez, da porta do quarto de casal, encostou o ouvido direito na folha de madeira, na vã tentativa de flagrar algum comentário da esposa. Silêncio. Como se tudo mergulhado na modorra de fim de tarde.

— Meu cé…

— Pare de me chamar de céu! Para você, hoje, serei…

E um ribombar de respostas relâmpagos, num trovejar seco e inclemente, desabou sobre Melquíades.

Ajoelhou-se ao canto da porta e lá ficou. Oraria, se cresse na força das orações. Fora, contudo, educado pelo padrinho Carlos Dornival, homem materialista, avesso ao credo da Igreja, bem como às crendices do povo.

 

***

 

O dia raiara fresco, o firmamento encoberto de nuvens pejadas de esperança. Nas praças de Licânia, o passaredo pontuava a manhã com um trinado festivo.

Melquíades despertou com as costas em miséria. Dormira no chão, junto ao quarto. Levantou-se, abriu as janelas e deu pelo céu em adereço de chuva.

Alisou o bigode, ajeitou o cabelo, e rumou para o quarto. Altaneiro e decidido. Quando chegou bem próximo, a porta se abriu e Lenilda saiu. O cabelo fresco do banho, a roupa cheirando a alfazema, os olhos de gata manhosa. Ela o abraçou, e soprou-lhe nos ouvidos:

— Por que não vamos…

Não concluiu o convite, ao perceber a falsa birra de Melquíades.

— Você ontem à noite não me disse que você não era o meu céu!? Disse ou não disse? — protestou Melquíades.

Nisso, um vento fresco cruzou a sala, trazendo um cheirinho de chuva.

— Serei sempre o seu céu, seu bestão!

E, enquanto proferia tal resposta, Lenilda foi descobrindo o corpo de Melquíades, retirando sua roupa; ao tempo em que o cobria com o seu frescor de rapariga em festa. Levou-o para o muro, aos fundos da casa. Amaram-se no chão de terra batida, no batismo da chuva. Num coito febril, apesar da manhã banhada pelo frescor outonal.

 

***

 

— Padre Araquento, ajude-me!

— Em que posso servi-lo, filho de Deus?

— Minha companheira vive ao sabor das nuvens. Se céu limpo, nada de nada. Se céu nublado, uma fartura de amor. Diga, seu reverendo, o que é que eu faço?

O padre abençoou Melquíades, não sem antes orientá-lo. Ao final, pediu-lhe a sua conversão: “Todos os caminhos nos levam a Cristo!”.

Hoje, Melquíades, mal surge o verão, muda-se para o seu pequeno sítio no Serrote da Rola. E, quando a invernada se aproxima, desce para a cidade, direto para os braços de Lenilda.

Comentam na pequena província que o padre Araquento, também, obteve a conversão de Lenilda. Isto, após longas e sucessivas visitas do prelado à residência da pobre mulher abandonada.

— O nosso vigário é um homem milagroso! — assacam os pinguços do Mercado, quando a veem passar, sob o céu inclemente de Licânia, para a missa de domingo.

 

Clauder

Clauder Arcanjo

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