Clauder Arcanjo – Filosofando na chuva

Clauder Arcanjo – [email protected]

Domingo de janeiro. Precisamente, 24. O dia amanhecera sob a bênção da chuva. O sol nem dera as caras neste sertão de meu deus. Tomado pela preguiça e pela falta do que fazer em dia assim, eu estiquei o sono e rolei na cama mais umas horas. Cansado de tanta indolência, levantei-me, corri os olhos no horizonte tomado pelas nuvens, lavei a cara e tomei meu café, bem lentamente.

Nem coragem de sair para almoçar eu tinha. Aproveitei uma bobeira das nuvens e corri para o restaurante mais próximo. Mal saí de casa, a chuvarada voltou a ficar mais forte. Fitei o céu e havia, no formato de algumas nuvens, a cara de troça. Ou seria impressão minha? Não sei. Pouco importa.

Almocei com vagar, um olho no prato e outro na bica lá fora. Como ela não abrandava, cuidei de solicitar ao garçom um guarda-chuva, de empréstimo, para ir até o meu carro que se encontrava um pouco distante.

Ele, de pronto, conseguiu um e acompanhou-me. Satisfeito por chegar no carro sequinho, esbocei um sorriso maroto para o tempo de inverno. Como se eu cá pensasse com os meus botões: “Chove chuva, chove sem parar… Chegarei ao carro, sem me molhar!”

Opa!… “Chuá!…”

Um motorista mal-educado passou bem junto do meio fio e, penso que a propósito, jogou um jato d’água sobre nós. Ficamos tais quais dois pintos molhados. Um deles, de guarda-chuva na mão: o garçom. E o outro, este cronista de província, abobalhado, com a chave do carro por entre os dedos rijos e… com um palavrão preso na boca. Não o soltei em respeito ao garçom que me servira tão nobremente.

De mim, cuido eu; mas, do garçom… quem haverá de cuidar? Pois este, incréu com a defesa por alguém, soltou uma cachoeira de impropérios na direção do motorista que nos molhara. O mais contido e o mais bem comportado foi: “Seu filho de uma égua de bexiga arriada!”. Quanto aos demais, silencio. Em respeito aos bons modos e, claro, ao código de ética deste jornal.

Pois bem, entrei no carro, totalmente encharcado, e toquei para casa.

Tive que tomar outro banho, apesar do frio intenso. Ao sair do chuveiro, um café forte para esquentar o corpo. Com pouco, a decisão: hoje, de casa não mais sairei.

Armei a rede, peguei um livro e chamei o sono para a siesta. E, sem dar pelo tempo, acordei tarde alta:

— Meu Deus! Nem me dei conta das horas.

Disposto, e com uma vontade de queimar calorias, resolvi sair para uma caminhada. O tempo estava encoberto, mas as nuvens não anunciavam chuva. Aproveitei a trégua, coloquei o tênis e toquei para a praça. Na segunda volta, o encontro com o Companheiro Acácio:

— Acácio, fazendo seu footing?!…

Não me respondeu, caminhava absorto, entregue a mil elucubrações. Conhecia bem o Companheiro, nossa amizade tornava-o bem íntimo e, de certa forma, previsível para mim.

“Tenho que ser hábil para entrar no mundo do Companheiro Acácio. Algo o aflige, pode ser: política, sociologia, segurança e violência urbana, ecologia, distribuição de renda, ética…” Sabia que seu campo de observação, e preocupação, era vasto e profundo.

Fiquei lado a lado com ele; na esperança de catar uma pista, por menor que fosse. Na curva seguinte, Acácio estancou, ao perceber o retorno dos pingos da chuva, e disparou, professoral:

— Chuva, água limpa e fonte permanente de reflexão!

— Filosofando na chuva, Companheiro?

— Não há, na minha visão, ambiente melhor. A chuva espanta a companhia dos néscios, fazendo com que, se nos desligarmos de tudo, entremos no cerne do ser, elegendo a maiêutica como ritmo para a cadência dos nossos passos.

Neste exato instante… Opa!… “Chuá!…” Outro motorista mal-educado jogara, sobre nós, uma lama fétida, lama esta que escorria na rua, nas proximidades de um bueiro, entupido pelo lixo não recolhido pela prefeitura.

Acácio, com a água pútrida a escorrer dos seus lábios filosóficos; eu, com raiva pelo segundo banho não planejado. De mim, cuidei eu; mas, de Acácio…

Eu, antes de formular tal pensamento ou sentença, ouvi a voz de Acácio a explodir. Numa cascata de palavrões e imperativos categóricos impublicáveis.

— Calma, Companheiro Acácio! Voltemos ao mundo puro, dialético, sereno e límpido da filosofia — tentei aquietá-lo.

— Que a filosofia e você vão para a… (censurado).

E saiu a gesticular, feito um possesso, pelas avenidas lavadas da cidade. Enquanto a chuva engrossava, e a noite, lenta e astutamente, caía. Com toda razão.