Clauder Arcanjo – Estrada da vida

Clauder Arcanjo – Estrada da vida

 

Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.

(Raul Pompeia, em O Ateneu)

Hoje, distante da minha província, e bem afastado do jardim da infância, vi-me abraçado com as lembranças de outrora. De quando era eu menino.

A ida à escola, o abecedário, as primeiras letras, caprichadas num caderno de linhas azuis, o giz da professora no quadro verde com a lição — no Patronato Sant’Anna não havia quadros-negros —, o barulho da criançada na saída ao toque da campainha. Enfim, um universo de novidades tamanhas, a se desenrolar frente aos meus olhos inquietos e curiosos, bem como a suspeição da existência de um futuro sem nada que me gerasse angústia. Quando se é criança, sonha-se tolamente em abreviá-la.

E, frente a tudo, se descortina, agora, a paisagem de Santana. Santana do Acaraú, terra natal; Licânia dos meus ancestrais. O rio, com pouca água em seu leito na maior parte do ano, porém caudaloso e revolto no período curto da invernada, é a coisa mais marcante deste meu inventário. Lá, desfilavam as canoas, a enfiarem suas varas longas no leito de correntes turvas e profundas, levando e trazendo gente (e seus pertences) de uma margem a outra. De vez em quando, o estrondo da queda das barrancas das ribanceiras (logo arrastadas pela força da correnteza); o som do búzio dos canoeiros a instilar medo no coração dos mais assustados.

E o remanso da Pedra da Luzia? Lá, diziam-nos, morreram (e morreriam) muitos meninos afoitos. Claro que nos mantínhamos afastados daquele “sepulcro aquático”. Uma tarde, uma correria em direção à margem do rio, um bêbado (não se sabe se intencionalmente ou não) caíra n’água e era velozmente arrastado; foi salvo pela canoa do hábil Mestre Caburé, antes de se afogar tragado pelo “funil” da Pedra da Luzia.

Final da manhã, quando chegava para admirar o balé dos canoeiros, e o salto dos jovens acrobatas dependurados nos ramos das ingazeiras, eu via, ao longe, o som das pancadas. Dava com a vista em mulheres acocoradas, surrando as roupas encharcadas de sabão de pedra e água: eram as lavadeiras da Pedra da Luzia. Não entendia o porquê delas continuarem a baterem roupas, e disporem-nas para quarar, se as águas estavam tão “sujas”.

No domingo, a paisagem mudava, a cidade via-se em festa. Era o dia da feira. Os caboclos corriam léguas, trazendo seus sacos de milho e feijão; antes do negócio, a missa e a bênção de Senhora Sant’Anna. Depois, no mercado, a venda ou o simples escambo de produtos. Sem falar, no cheiro do café, das tapiocas e do caldo de burro (mistura de leite quente, milho, açúcar e canela). Alguns exageravam nas doses de cachaça e, ao meio-dia, tocavam, com a cabeça zonza e o cuspo grosso, no rumo de casa. No mais das vezes, conduzidos pelas esposas, cabisbaixas, e pela enfiada de filhos.

Por último, a hora do Ângelus. As seis badaladas do sino da Matriz a anunciarem o cair da noite e chamando a passarada para o agasalho nos benjamins da praça.

Tal paisagem me soa hoje lírica e, teluricamente, benfazeja na memória. Antes, quando menino, bem sei, ela não detinha as tintas com que, neste momento, a descrevo. Ilusões de criança? Saudade hipócrita? Não sei, apenas há, no íntimo do coração deste cronista (perante tanta insipidez que nos cerca), uma vontade de revisitá-la, assanhando os cabelos da minha saudade. Como se um clamor de vozes instigasse-me a narrar, num espanto indescritível, cada detalhe deste antigo cenário.

Escrevo, como se, tal qual um apóstolo, emitisse uma carta para a posteridade, afirmando:

— É isso, em resumo, o que eu e todos os cronistas temos pregado, e é isso o que, caso sejas tocado pelo verbo narrado, viveste.