Clauder Arcanjo – Dois amigos

Clauder Arcanjo – Dois amigos

Conheciam-se e respeitavam-se há anos. Melhor, desde os bancos da universidade; onde, juntos, os dois amigos cursaram Direito. Lá, eles dividiram os bancos da velha faculdade, bem como as descobertas dos intrincados meandros da filosofia, da sociologia, sem falar nos códigos civis e penais.

Ao formarem-se, pensaram, até, em montar uma banca juntos. No entanto, um concurso público atraiu José, e este fez-se magistrado. João optou pela luta diária nas defesas de seus clientes. Hora estava garantindo um relaxamento de pena; outra, na defesa de uma viúva incomodada pela redução de sua pensão.

De quando em quando, os dois se encontravam no Fórum da cidade. Apesar da toga de José, o abraço sempre era festivo. Isto se se desse nos corredores, longe do protocolo da sessão. Caso contrário, o meritíssimo e o senhor advogado dariam o tom do encontro.

A cidade não era, até então, palco para causas polêmicas. José, o magistrado, despachava as suas sentenças num ritmo cadenciado e rotineiro, e sob a tutela do arco do texto da lei. João, o advogado, enfiava-se nas disposições ordinárias, nos artigos e súmulas da Alta Corte, em busca de defender os seus contratados da melhor maneira, e sob a tutela e o apanágio do texto da lei.

Até que…

Num certo e nem tão longínquo novembro, deu entrada no escritório do João uma comissão de nobres senhores da província. Circunspectos, solicitavam que ele desse entrada, em nome daqueles “nobilíssimos representantes da sociedade civil”, em uma ação contra o prefeito da região por flagrante improbidade administrativa.

João pediu que passassem para a sala contígua. Sentaram-se em torno da grande mesa de reunião, sorveram, rápida e ansiosamente, suas xícaras de café e, sem perda de tempo, desfilaram um zilhão de argumentos; alegando que, tudo aquilo e muito mais, eram claros, solares e evidentes fundamentos para a “nobre causa”.

João afrouxou o laço da gravata, deglutiu um gole grande do seu café, já frio, e anteviu fumos de confusão à vista. Não que ele morresse de amores pela gestão municipal; contudo, sua vida de bacharel nunca remara em águas confusas e revoltas, até o presente momento.

Pigarreou e tentou argumentar. Contudo, mal abria a boca, os presentes alteavam o tom de voz, crispavam os dedos sobre a mesa e arregalavam os olhos, tomados de uma fúria assustadora.

— Preciso de tempo para estudar a questão, senhores — ponderou João.

— O tempo urge e a sociedade se insurge! — argumentou um deles, eloquente enamorado das glosas e dos sonetos.

— A justiça tarda, mas não falha — contra-argumentou João, preso ao lugar-comum. E levantou-se, como a sinalizar o fim da questão.

Geraldo, o líder da comissão, pôs-se de pé e pediu serenidade:

— Entendo as ponderações de ambas as partes. Nós, tomados pelo clamor das ruas, queremos celeridade; o ilustre advogado, zeloso guardião da legislação pátria, tempera o aço da pressa no fogo da diligência. E, para isso, nos pede tempo. Aguardemos, senhores.

Geraldo concluiu sua preleção e voltou-se para João, ofertando-lhe a mão direita; em claro e evidente sinal de contrato estabelecido.

Com pouco, deixaram o escritório em passo acelerado; alguns a ruminarem e assacarem cochichos de descaso sobre o causídico.

João não dormiu durante aquela noite. Na verdade, levou a madrugada toda a assanhar pesadelos, em permanente debate consigo mesmo. Uma voz interior, feliz e pragmática, o empurrava para assumir a causa. Uma outra, soturna e merencória, o instigava a não tomar o caminho íngreme que se descortinava.

Até que…

Compêndios, livros, consultas mil… e João deu entrada em dezenas de denúncias de irregularidades nos órgãos públicos, contra o prefeito, com uma saraivada de processos, instigando o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas dos Municípios, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União, a Polícia Federal, etc.

Na outra frente, o senhor prefeito ajuizou uma ação de caráter liminar no Juizado local.

***

Dois dias depois, as partes foram ouvidas. O prefeito, com o seu séquito de advogados de uma banca renomada; a acusação, representada por João.

Togado e macambúzio, José adentra ao recinto. Ao cruzar por João no corredor, não houve abraço algum.

Os argumentos das partes envolvidas foram ouvidos pelo meritíssimo juiz. A defesa carregou no latim e fugiu do mérito. A acusação deteve-se na prolação das evidências. Vinte e quatro horas depois, a liminar é concedida ao chefe da municipalidade.

João, contrariado com a decisão da justiça, resolveu mudar de estratégia. Procurou o Poder Legislativo; um vereador acatou os seus argumentos e foi ao ataque na tribuna da Câmara. Com a denúncia, e a peça inaugural de João, os vereadores não se omitiram, os procedimentos foram adotados e o prefeito e o vice-prefeito foram cassados.

***

Até que…

Um mês depois, na saída do Fórum, José e João se reencontraram. Pelo olhar (daqueles que se conheciam e se respeitavam há anos. Melhor, desde os bancos da universidade…), trata-se de não mais dois amigos. Salvo melhor juízo.

 

Clauder Arcanjo – [email protected]