Clauder Arcanjo – Cinzas

Clauder Arcanjo – Cinzas

Retorno a Santana, eterna Licânia, para lá enterrar mais um dos meus tios. Encontro a província natal encoberta por silêncio e dor. Tio Gerardo foi levado, numa tarde de uma quarta-feira de sol manso e de céu prometendo chuva, ao pequeno adro da Igreja São João e, lá, velado por parentes, amigos e conhecidos.

Gerardo Alves, tio materno, era o segundo filho da longa prole de vovô Sebastião Alves. Desde jovem, sempre afeito a roupa branca e bem passada; somado à cabeça altiva e ao caminhar maneiro, desde passado distante, Tio Gerardo recebera a alcunha de “Barão”. Mamãe odiava tal distinção de realeza, achava que ela só atrairia azar e maus presságios.

Com pouco tempo, o verbo se fez carne. Amigo do baralho e da sinuca (e completo inimigo da matreirice dos jogadores profissionais), meu tio foi perdendo seguidamente na banca, no salão e no carteado: dinheiro, carro, gado, negócio, fazenda… Tudo, enfim. Tio Gerardo Alves só não perdeu a casa própria por uma divina insubordinação da esposa. Tia Celeste recusou-se a honrar a dívida de jogo, pedindo asilo e proteção no regaço da nossa casa. Minha mãe, incansável embaixatriz familiar, neste caso fez-se promotora fiel da causa de Tia Celeste.

— Não assine, Celeste! De meu irmão, cuido eu.

E, segundo fiquei sabendo, ofereceu um copo d’água à chorosa Celeste e rumou, sozinha, para a Avenida São João. Entrou de casa adentro, e o assunto deu-se por encerrado. Que argumentos ela usou? Nunca ficamos sabendo.

***

O corpo pesado estava disposto num caixão humilde, coberto por um véu imaculado. Ao seu lado, esposa, filhos e filhas. Bem perto destes: genros, noras, netos, netas, bisnetos e agregados. Rodeado de amigos, Gerardo Alves esboçava um quê de paz na face mortuária.

Acheguei-me, fiz o nome do pai ao entrar no pequeno templo, e dei os pêsames de forma atabalhoada. Nunca sei me comportar em tais ambientes de dor suprema. Em vez de “meus pêsames”, distribuí, por diversas vezes, um sorriso meio torto e a minha indefectível saudação: “tudo bem?”. Mal saía tal impropriedade dos lábios, recolhia-me no manto da timidez e procurava logo uma saída. Com pouco, vi a silhueta do meu velho pai; e, junto dele, sentei-me, para não mais sair. Pedi a bênção à mamãe; meus irmãos, prontamente, me impuseram:

— Fale, em nome da família.

Este mister de escritor sempre foi confundido com o ofício de orador na minha cidade. O que eu poderia proferir aos presentes?

— Não se esqueça de mencionar de como ele adorava os balões! — soprou-me Dedé, minha irmã.

— Fale pouco, muitos já estão cansados da longa vigília — admoestou-me um desconhecido.

Depressa, rascunhei e rabisquei, no caderno da mente, uma sequência de tópicos. O padre chegou atrasado, e a missa de corpo presente começou com atraso.

Não sei por que assomou, ao meu apontamento de orador fúnebre, a figura de Jó.

O padre fez a bênção final, não sem antes aspergir água benta sobre o corpo velado. Ao retornar ao altar, disse que alguém falaria pelos familiares; pediu desculpas por ter que sair, alegando que ainda rezaria uma missa em capela distante. Menos um, pensei, para censurar-me, caso me perdesse nos desvãos da oratória fúnebre.

Fui ao microfone, antes pedi ao Senhor que fizesse, da minha palavra, a Sua palavra. São Sebastião, coberto de flechas, espiava, do centro do altar, o meu martírio.

***

Ontem, ao saber da notícia da passagem do nosso querido Tio Gerardo, invadiu-me uma espécie de sonho. Ou visão? Não sei. No entanto, penso eu, tal definição muito pouco importa.

Tio Gerardo, após mais uma penosa sessão de hemodiálise, passara mal e fora levado à UTI. Lá entrando, os médicos tentaram reanimá-lo. Drogas pesadas foram injetadas, na tentativa de mantê-lo “vivo”. De repente, alguém grita: “Coloquem-no no balão…”

Não foi preciso que se completasse a sentença. Tio Gerardo ouvia, ali, o chamado d’Aquele que o convocava para o Seu reinado. Uma paz enorme assumiu sua face, e ele subiu, num balão multicolorido, rumo ao Empíreo.

Até que enfim, Tio Gerardo, você será reconfortado e ficará em paz! Você que, tal como Jó, viu-se despido de posses e bens, porém nunca ousou renunciar ao riso, nunca se deixou contaminar pelo ódio e pela fúria. Esta noite, ao olharmos para a calçada de sua residência, Tio Gerardo, não daremos com a sua figura hercúlea e bonachona. Sabe por quê? Pelo motivo que acabei de descrever no meu sonho: você estará subindo ao Paraíso, num balão divino, pajeado pelas estrelas, neste céu de nossos antepassados.

***

Ao retornar de Santana, minha Licânia, depois de lá plantar, no chão duro do cemitério, mais um dos nossos parentes, a sensação de tê-la deixado encoberta por silêncio, dor e… cinzas.

Clauder Arcanjo – [email protected]