Clauder Arcanjo – Boa noite, madame!

Nunca enterre uma saudação.

Saiu do trabalho. Não sem antes: trancar as gavetas; arrumar a mesa metodicamente para o dia seguinte; ir ao banheiro, lavar as mãos e pentear o pouco cabelo na cabeça larga.

Ao deixar o prédio, logo depois de bater o ponto, a passagem pela porta grande do velho prédio da repartição. Junto à esquina, a mulher com os jogos da loteria.

— Boa noite, Madame!

Não dava bolas para a sorte.

Caminhar pela rua infestada de gente e barulho era um exercício que o fazia tranquilo, por mais estranho que isso possa parecer. Aprendeu, com poucos meses, a mergulhar nos seus pensamentos e flanar a passos largos, sem dar por conta da multidão nem muito menos da azáfama do fim do dia.

Duas quadras depois, a confeitaria. Pão e café com leite. Antes de pagar a conta, a saudação:

— Boa noite, Madame!

Com o estômago forrado, a vontade de mergulhar por entre as obras clássicas da livraria. A atendente a espanar o balcão, a tanger a poeira por cima de Homero, Sófocles, Dante, Cervantes, Goethe, Eça, Machado, Virginia, Clarice e companhia.

Entrava e ia para a prateleira mais ao fundo. Montaigne ensaiava o rumo das páginas primeiras. De repente, um dedo de prosa com Faulkner, outro cadinho de mistério pelos labirintos de Borges, para culminar numa sequência ao sabor do acaso: Virgílio, Shakespeare, Tolstói, Flaubert, Turguêniev, Balzac, Henry James, Kafka, Conrad, Calvino, Cortázar, Gabriel García Márquez, Drummond. Com mais, o aviso do fim do expediente: “Vamos fechar!”.

Disfarçava e saía, marcando a página do tomo último que visitara. Não sem depositá-lo na parte mais escondida da seção.

Ao cruzar com a gerente, elevava a gola do casaco e despedia-se:

— Boa noite, Madame!

Quatro quadras adiante, a fachada do prédio: Recanto das Abelhas. O velho porteiro a roncar no silêncio da noite.

Abria o portão bem devagar e subia para o seu apartamento. Antes, limpava bem o solado dos velhos sapatos no capacho da porta de entrada. O olhar no relógio da sala, na casa das nove horas.

O casaco, no cabide da sala; a pasta, no canto da mesinha de centro; o velho jornal, na cesta junto à cadeira de vime, herança de família.

Na cozinha, a saudação do canário belga. Sobre o fogão, a panela com o resto da sopa de verduras. Sorvia-a sem esquentá-la. Com receio de despertar a companheira.

Um banho farto, longo e demorado. Antes de vestir o pijama de flanela, a loção de camomila atrás das orelhas e aspergida nas axilas.

Saiu do banheiro. Não sem antes: trancar as portas; arrumar a mesa metodicamente para o dia seguinte; ir ao banheiro, lavar as mãos e pentear o pouco cabelo na cabeça larga.

A entrada no quarto de casal.

Mal abriu a porta, deu com os olhos dela dentro dos seus.

— Boa noite, Madame!

O arremesso do vaso de flores atingiu-o na altura da testa.

Clauder Arcanjo

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