Clauder Arcanjo: Acácio e a dúvida

A cidade pequena sempre foi palco para mexericos e intrigas na história da humanidade. Em Licânia não poderia ser diferente, apesar dos rogos do Padre Araquento, arauto da litania dos bons modos.

Companheiro Acácio, metido no seu paletó escuro, não metia o bedelho nas coisas da província. A filosofia e a leitura dos clássicos o empurraram, desde priscas eras, para os Mistérios de Elêusis e para o trote de Rocinante.

Eis que, certo dia, surge uma dúvida entre os licanienses. E isto foi o suficiente para o caos se instalar nas ribeiras do Acaraú.

Todos participavam das discussões e, em vez de encontrarem respostas, qual nada!, a dúvida mais se lhes aprofundava.

Nas calçadas, ao cair da tarde, a conversa entre as comadres giravam em torno da questão posta. Esqueceram os namoricos, as dívidas de jogo do Baltazar, a nova mancebia do Zé Alves, bem como as pernas de fora da jovem Rita; segundo as pias Filhas de Maria, “a provocar os homens de bem a cair nas águas sujas do pecado carnal”.

Com pouco mais de uma semana, como tudo em Licânia caía nos braços da política, estabeleceu-se duas agremiações partidárias. Fervorosas, acaloradas e apaixonadas. A capitaneada pelo João Américo, sediada no São João, era insuflada pela dialética do existencialismo mais profano. “O mundo, antes de ser mundo, foi o palco da dúvida. Melhor, a pedra lascada do questionamento. Duvido logo existo”. A outra, com delegacia na casa do velho Raul, tangida pela pinga forte do Bar do Edir, e sob os auspícios da algazarra e da putaria, deitava tudo na poeira da troça e no ritmo do pagode. “Quem tem dúvida é corno. Quem tem certeza é macho. E quem discorda de nós não é chegado!”; gritavam, ao som do fole de oito baixos.

***

De início, o caso animara a cidade. Deu um chega pra lá na pasmaceira geral que, há anos, toldava de mofo e mesmice os quintais e os muros da velha cidade.

No entanto, com mais uns dias, a coisa tomou foros de barbárie e guerra aberta.

— São uns vândalos, uns anarquistas sem eira nem beira, discípulos de Bakunin! — protestava João Américo, aclamado por José Aguiar e Mundola.

Fim da madrugada seguinte, Licânia foi acordada por uma legião de bebuns a desfilar pelas ruas e becos, na cadência de uma marchinha singular:

— Ei, você aí / Me dá uma dúvida aí / Me dá uma dúvida aí! // Não vai dar? / Não vai dar não? / Você vai ver a grande confusão / Que eu vou fazer bebendo até cair / Me dá, me dá, me dá, oi! / Me dá uma dúvida aí!

Quando a troça do Raul entrou na Avenida São João, os partidários do existencialismo os esperaram com a “certeza” do pau e da pedra. Foi um deus nos acuda! Bodô e Gazumba, bêbados há semanas, ficaram bons num segundo. Gritaram para os demais, a plenos pulmões, em meio à saraivada de rebolos e tijoladas: “Recuar! Recuar!”.

Fingiram um recuo tático, para avançarem, armados com bosta de vaca e excremento de jumento e cavalo, com ímpeto e força total. A peleja estava instalada!

Quando o sino da Matriz chamou os fiéis para a missa das seis, Licânia não deu ouvido ao chamado de Deus. Companheiro Acácio, mal abriu a janela da frente para saudar o novo amanhecer, após a leitura de uma passagem de Shakespeare, foi atingido por um petardo certeiro, que o atingiu bem no meio das fuças. “Ser ou não ser bosta de jumento, eis a questão!” — tripudiou o atirador de elite.

Os mais cordatos cuidaram de estabelecer uma zona de exclusão. Após idas e vindas, o Largo da Matriz foi considerado uma faixa neutra. Lá, então, se concentraram todos os embaixadores da paz. Na realidade, esses se resumiram a três pessoas: o juiz Deoclécio Cruz, o padre Araquento e o Companheiro Acácio; este, já refeito do ataque, após um longo banho, sem mencionar a desinfecção da epiderme com cal virgem e creolina. “Com merda fresca de jumenta nova não se brinca, meu filho!” — admoestava-o a velha Lídia, enquanto passava-lhe a bucha por todo o corpo.

— Quem se atreve a visitar os contendores em busca de uma solução? — inquiriu o juiz.

Silêncio de cemitério velho.

Com pouco, Companheiro Acácio propôs fazer uso da amplificadora da velha Matriz para tentar um pacto. “Muito bem, meu filho, e assim evita-se entrar na zona de combate” — concordou o assustado, e medroso, pároco.

Acácio tomou um gole grande de água serenada, cofiou o bigode e empostou a voz:

— Os beligerantes precisam se sentar para selar um acordo. Aguardamos, perante o representante da lei e dos céus, um representante de cada lado. Que venham de espíritos desarmados. Licânia clama pela paz.

***

— Sou o representante dos partidários da dúvida — anunciou João Américo.

— Sou o embaixador dos partidários da… certeza — asseverou o velho Raul.

Padre Araquento os abençoou, o juiz fez-lhes jurar perante Deus, o Estado e a Igreja; e Companheiro Acácio os levou para o silêncio da sacristia.

Os outros embaixadores da paz quiseram segui-los, Acácio não permitiu:

— Preciso de um instante a sós com os dois. Confiem em mim — advogou; seus olhos estavam fúlgidos, como nunca foram percebidos antes.

Menos de uma hora se passou, e os dois “contendores” saíram cabisbaixos, quietos e mansos. Até hoje, apesar do anúncio festivo da trégua em praça pública, ninguém ficou sabendo de quais “armas” o Companheiro Acácio usou. Uns, apostam todas as fichas na Dialética do Esclarecimento do Coice do Burro Manco; outros, no estoico Método Cartesiano-epicurista do Mal Absoluto do Fundo sem Dono, aliado ao Sofismo da Jumenta Desembestada e Parida.

Se a dúvida persiste?! Bom, deixemos o tempo correr, ele é o mais sábio doutrinador; a cidade pequena sempre será palco para mexericos e intrigas na história da humanidade. Em Licânia… não seria diferente.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]