Clauder Arcanjo:

 

Ser ocupante da Cadeira XXXI, da Academia de Letras do Brasil (ALB), cujo patrono é Marques Rebelo, é ofício para o qual me declaro “incompetente”. Não tenho a grandeza do criador de A estrela sobe, não sou detentor da maestria de um autor que abre um dos seus romances — O trapicheiro — com:

 

“Entrou em passos de borracha e vestido amarelo — Jurandir farejou possibilidades — espremendo a bolsa de camurça contra a ilharga. Tosca, informe, adivinhei-a como se na fosforescente massa de uma nebulosa antevisse o universo, claro e úbere, silente e apaziguante, que se formaria num futuro milenar. Era a múltipla visão salvadora — seio e umbela! — em mil sonhos sonhada, essência misteriosa de um mundo sem mistérios, sufocado de anseios e de portas cerradas. Tocou-me o sorriso compreensivo e maternal.”

 

Marques Rebelo, pseudônimo literário de Edi Dias da Cruz, nasceu no Rio de Janeiro, aos 6 de janeiro de 1907, e encantou-se na cidade do Rio de Janeiro, aos 26 de agosto de 1973. Foi um escritor brasileiro da tradição iniciada por Manuel Antônio de Almeida e continuada por Machado de Assis e Lima Barreto.

Jornalista, poeta, contista, romancista, cronista, homem de muitos livros publicados, plenos de vigor e lirismo. Sempre amparado na palavra certa, a captar, como poucos, “a alma das cidades”, Marques Rebelo é tão superior a mim que “correr com a sela” seria a minha ação mais digna. Contudo, cá não há selas nem bridão, apenas o esporear do tempo e o espiar deste microfone; porém, como sou provinciano teimoso, permitam-me, não vou afrouxar.

O protocolo, quando da minha posse na ALB, em primeiro de novembro de 2018, exigia-me discorrer acerca da vida e da obra de Rebelo, livros que orgulham sobremaneira as letras nacionais. Um exemplo de intelectual para as gerações atuais.

Carioca, a infância de Marques Rebelo dividiu-se entre o bairro de Vila Isabel e a cidade mineira de Barbacena, para onde se mudou com a família em tenra idade.

Com o Modernismo a exigir mudanças na arte brasileira, Marques Rebelo, de início, filiou-se entre os escritores que procuraram romper com as ditas “formas tradicionais”. As primeiras contribuições deram-se em poemas, nas revistas Verde, Antropofagia, Leite Crioulo, entre outras. Rebelo travou amizade com escritores de renome, dentre os quais Manuel Bandeira, Alcântara Machado, Mário de Andrade e Ribeiro Couto. Em seu livro de estreia Oscarina (1931), entretanto, começado em um leito de hospital (aproveitando-se do ócio causado por acidente em Serviço Militar), os contos seguiram as linhas mestras da literatura canônica brasileira, mantendo-se à margem dos “dogmas” da Semana de 22, dando significativa continuidade e renovação às letras nacionais.

Despertada a admiração da “grande crítica” e dos maiores escritores, prosseguiu Rebelo com as obras Três Caminhos (1933); Marafa (1935) — Grande Prêmio de Romance Machado de Assis, e parcialmente filmada, em 1963, pelo diretor italiano Adolfo Celi, com roteiro de Millôr Fernandes —; A estrela sobe (1939), considerado por muitos a sua obra mais relevante (com adaptação para o cinema, em 1974, por Bruno Barreto); o livro de contos Stela me abriu a Porta (1942) e, passados anos a publicar crônicas literárias, apresentou, para mim, a sua obra-prima: a trilogia O Espelho Partido (O Trapicheiro (1959), A mudança (1962) e A guerra está em nós (1968)) — entre o segundo e o terceiro tomos a publicação da novela O Simples Coronel Madureira (1967). Afora três obras sobre Manuel Antônio de Almeida (1943, 1951, 1973), livros de crônicas da vida brasileira e acerca de suas viagens pela Europa, e outros de viés pedagógico e infanto-juvenil.

Marques Rebelo, com um estilo moderno, multifacetado e delicioso, é festejado pela intelectualidade brasileira. Além de fundador de vários museus (Museu de Arte de Santa Catarina, Museu de Arte Popular do Colégio de Cataguases, Museu de Belas-Artes de Cataguases, Museu de Arte Moderna de Resende), Rebelo promoveu, entre nós e no exterior, pintores, exposições de artistas plásticos e escritores (Portinari, Di Cavalcanti, o português Miguel Torga, Herberto Sales). Culminando seu reconhecimento, Marques Rebelo foi eleito, em 1964, à cadeira nº 9 da Academia Brasileira de Letras.

Infelizmente, Marques Rebelo vem sendo pouco lido pelos atuais escritores. Entrei, nessas últimas semanas, em várias livrarias e recintos de literatos, e pus-me a sondar sobre Rebelo. Poucos haviam-no lido; outros, pasmem, nunca ouviram, dele, sequer falar. Se me assustei? Eu, não!… Mas, quando eu discorria sobre Rebelo, os “novos gênios” nem se assustavam, pois, desconfio, era simplesmente burrice. Não, não riam. Citando, mais uma vez Brodsky: “Eu entendo o quão risível é, mas não é assunto para rir porque, bem, pessoas burras são terrivelmente más.” No caso, assusta-me a má literatura. Vade retro!

Como gerar clássicos sem se ler os mestres? Como asseverou o meu amigo e sociólogo Aécio Cândido: “O nada só produz o nada”. E, atrevo-me a completar: “Não há renovação sem o zelo pela tradição”. Está mais do que na hora de colocar os livros de Marques Rebelo sobre a mesa de muitos pretensos ícones da literatura contemporânea brasileira.

Recentemente, lendo, em alto-mar, uma passagem de O trapicheiro, ela me levou a refletir. Divido-a com vocês:

 

“Permaneci longo tempo contemplando a paisagem, a minha paisagem. Há quanto tempo não o fazia? Esquecera-me dela como se esquece das linhas dum rosto familiar e amado. E o mar era o meu mar, e a montanha era a minha montanha, e tudo estava calmo e imóvel.”

 

Nessa noite, sonhei com o meu rio Acaraú, Tejo e mar de Licânia. Há quanto tempo não o fazia? Ao longe, os contornos do Serrote da Rola, e tudo, calmo e imóvel, se revelou de um modo familiar e, cada vez mais, amado.

Nossa literatura, caro leitor, é um dos maiores patrimônios de nossa nação. Como sempre gosto de repetir, ao lermos, escrevermos e falarmos, passamos a lutar contra as “ilusões” com que a sociedade nos ameaça. A literatura tem faca afiada para rasgar o bucho do imaginário e alçar voo no firmamento do imaginativo.

A ALB congrega a inteligência cultural que honra a memória e a riqueza do nosso povo. Para tal mister, haveremos de ousar, ter “ambição de propósitos”. E isto me lembra de uma lição de Italo Calvino, em seu memorável Seis propostas para o próximo milênio: “A excessiva ambição de propósitos pode ser reprovada em muitos campos da atividade humana, mas não na literatura. A literatura só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função”. Sem esquecer Fernando Pessoa, quando propaga em Livro do Desassossego: “Toda alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos.” Infelizmente, alguns de nós somos atraídos pelo “mavioso e perigoso canto de sereia” da vida literária e não pela literatura.

Alguns me inquirem sobre o que me leva a escrever. Ora, a resposta é curta e simples. Porque escrever, para mim, é viver. No meu mister de escrevinhador, escrevo como um obcecado. E, cada vez mais, desconfio de que a condição para a criação é a obsessão. Quando se me apresenta a “chama da inspiração”, parto para cima; e, até transmutá-la em prosa ou poesia, ajo como um possuído. E se ela não surgir? Ah!, nesse momento, acendo a vela da transpiração e, paciente, velo pelo seu retorno, até a palavra se me insurgir, na pálida página, na página noite.

Para isto, a companhia dos livros. Sempre fui cercado pelos grandes da literatura. Os enfeites do nosso lar (não é, minha Biscuí?) são livros e mais livros.

Urge, também, desenvolver novos leitores. Leitura como transformação e cocriação. “Leitura. Moça de tez suave, de olhos de ressaca, mãos de seda e cabelos de graúna, além dos lábios de mel. Nunca me cansei de beijar excelsa dama. Durmo toda noite, até hoje, nos lençóis de papiro. Algumas noites, ela oferta-me poesias; em outras, curtas histórias; e, no mais das vezes, romances, que me arrebatam corpo e espírito. Suspirando, entro pela noite, e, geralmente, adormeço no colo da Leitura”; declarei, certa feita, quando de uma resposta para jovens leitores.

Um homem mede-se, também, pelo tamanho da sua teimosia. Meço 1,67m, mas, como bom nordestino, na métrica da teimosia seria um bom candidato ao basquete da NBA.

Em respeito à teimosia, loucura dos renitentes, permitam-me abordar a importância da imaginação e, por conseguinte, da literatura. Eu, mero escrevinhador de província, “contador de estórias”, como me definiu o mestre Manoel Onofre Júnior, reitero que a imaginação é algo valiosíssimo para nós, seres humanos.

Como escritor, estou por inteiro em meus escritos. Sete livros-filhos (Licânia, Lápis nas veias, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Pílulas para o silêncio, Cambono, e Separação), um na gráfica (O Fantasma de Licânia) e outros na sementeira, todos filhos peregrinos e (a)letrados deste exilado licaniense. Quando da criação, a paciência e o incentivo de minha musa: Luzia, minha Biscuí. Com ela, gestamos três lindas obras-filhos: Artur, Mateus e nosso benjamim, o Lucas Francisco.

Em tudo, ler e escrever, gerir e produzir, apresentar e incentivar, dou-me por completo. Acredite, apesar de ralo, que nem suco de pitomba, e fino, que nem assovio de soim (como chamamos o sagui nas ribeiras de Licânia), aqui, doei-me por inteiro.

Por último, mas não menos importante. As últimas notícias inquietam e turvam o céu brasileiro. Recentemente, sob os auspícios do céu de Brasília, assomou-me à mente outra passagem de Marques Rebelo: “Último pensamento de cada noite, primeiro de cada manhã. Mas no prado da esperança persiste a pequena rosa espúria da náusea.” Sob os auspícios da liberdade e da coragem, seremos escribas vigilantes da democracia e da paz social. Que os nossos futuros governantes não subestimem a nossa capacidade de mobilização, e que não ousem tripudiar da credulidade de nosso povo. Os que nos antecederam exigirão de todos nós a valentia dos utópicos e a sapiência dos verdadeiros homens e mulheres de bem. Valho-me de alguns versos do poema “Coragem”, da poetisa russa Anna Akhmátova: “Sabemos o que agora está em jogo / e o que está agora acontecendo. / A hora da coragem soa em nossos relógios / e a coragem não nos há de desertar.”

Que, assim como Marques Rebelo, eu saiba me “comportar” no mundo das letras nacionais e me faça um “provinciano exilado”, todavia digno das obrigações e dos elevados deveres que terei que honrar com a honorável Academia de Letras do Brasil.

Clauder

 

Clauder Arcanjo é escritor e editor