Carta de Deus – Clauder Arcanjo

São 3 e meia da madrugada. Estou em Mossoró, Rio Grande do Norte, neste 26 de abril de 2017. Na madrugada da última quarta-feira, há exatos treze dias, eu escrevi uma “Carta a Deus”.

A saudade está posta sobre a minha escrivaninha, e eu tento sobreviver em meio a minha montanha de livros, obras que, pelo menos hoje, não me consolam, não me dizem nada.

Confesso, Pai, estamos tristes. Tristes de dar dó. Por quê?!… Até as pedras do nosso caminho, sabem o porquê: estamos há dias sem a presença cristã, entre nós, de Milton Marques de Medeiros. Sim, cristã. Dr. Milton, como sempre gostávamos de saudá-lo, foi a mais viva encarnação dos ideais e dos valores pregados pelo Teu Filho, Deus Pai.

E eu, até hoje, Dona Zilene e amigos, pergunto-me: “Por que Deus não atendeu às nossas preces? Não digo às minhas. Não, não, eu não fui, não sou, nem nunca serei, digno das promessas de Cristo. Mas, refiro-me, em especial, às dos milhares de homens e mulheres do povo que recebiam a palavra amiga de Dr. Milton, que eram orientados pela bondade altaneira desse homem caridoso, que se serviam da farta mesa de pão e vinho desse semeador de amigos. Ah, Pai!, chego a pensar que Tu foste “maldoso” conosco e com todos esses Teus filhos aqui da ribeira de Mossoró!

Tive, lembra-Te, uma conversa particular com o Senhor, porém apesar de eu achar a minha causa justa, justíssima, não me atendeste. Pai Celestial, eu carreguei nas tintas, rogando para que deixasses Milton conosco. Animado no meu ofício, clamei, em epístola aos Céus: “Deixa, Pai, Dr. Milton Marques conosco!”.

Queríamos a continuidade singela das pequenas virtudes de Milton neste paraíso perdido: esta Terra. Verdadeiro vale de lágrimas. Milton era consolo e bênção para tantos filhos e filhas tuas, Pai! Lembra, Pai, que eu Te falei que ele conjugava, diuturnamente, um verbo (de manhã, de tarde e de noite). Qual verbo?!… Tu bem o sabes: o verbo “A-ju-dar” (com um “A” bem, mas bem, enorme, maiúsculo).

No velório de Milton, Pai, esta cidade chorou. Todos: pobres e ricos, sábios e aprendizes, velhos e jovens, filhos da cidade e do campo. Todos, unidos na (e varados pela) dor. Antes de “enterrarmos” Milton na morada eterna do Cemitério São Sebastião, a cidade aplaudiu a passagem do cortejo fúnebre, e eu pensei (se foi pecado, eu não sei): o povo Te vaiava, Pai.

Sim, e eu achei muito bom “sentir” aquelas vaias, meu Deus! Mandaste, para a Galileia, Teu filho, Deus-Pai, para nos servir e amar, para nos ensinar os mandamentos do amor e da caridade. Séculos e séculos depois, enviaste outro filho Teu, agora para as ribeiras do Upanema, para praticar o Teu mandamento maior: amar uns aos outros como Tu nos amaste… E, justo quando tanto precisamos do exemplo e da prática de Milton Marques, nesta terra Brasil tão consumida pelo egoísmo, pela falta de valores, pelo desrespeito ao próximo, Tu nos obrigas a viver sem ele!? Ah, Pai, aquela Tua vaia foi, Tu hás de convir, bem merecida!

Estou desnorteado, fruto de tanta dor e saudade. Olha, Pai, como estão os familiares de Dr. Milton (em especial, a sua esposa Zilene e suas quatro filhas); olha o nosso estado, Pai!, filhos legítimos e adotados desse sertão de Mossoró.

Estive ontem, terça-feira, por várias vezes, na sede da TV Cabo Mossoró (TCM). Na entrada, o vazio opressor da ausência de Milton. No parque das antenas, nos corredores, no máster, na edição, na rádio. Enfim, e em especial, no ar, nos olhos dos colaboradores, no silêncio dos clientes. Até as flores murcharam, todas. Tudo, tudo, soturnamente, enlutados. A sua porta fechada (ela, Pai, que estava sempre aberta a todos nós. Em especial, para os mais desvalidos), as luzes apagadas, o jeito melancólico das secretárias a me gritarem, ainda mais forte: “Ele não está, Clauder Arcanjo!”. Eu, covardemente, mais do que depressa, levei, novamente, a mão direita à sua porta de entrada, baixei os olhos e… chorei. Chorei, chorei. “Ele não vai voltar, e não daremos nossas risadas juntos, comentando sobre projetos de apoio à gestão, à educação e à cultura.” Ô, Pai!?…

Parei de escrever, porque dormi de cansaço sobre o meu computador. Ao acordar, o sol bordava de luz o amanhecer daquela quarta, e ao dar com os olhos na tela do meu notebook, algo novo estava escrito. Lerei para vocês.

Carta de Deus

 

Meus filhos e filhas, eu, Pai do Céu, fonte inesgotável de glória e de amor, decidi trazer Milton para o convívio dos eleitos. E explicarei, rapidamente, o motivo: a fábrica divina vem com uma produção com vários defeitos. Já reunimos Pedro, Paulo, Gabriel e todos os anjos e arcanjos, contudo os mecanismos celestiais andam com falhas crônicas: no motor da caridade, na suspensão do egoísmo, na caixa de marchas do amor… e tantas coisas mais. Enfim, tivemos que trazer Milton para o Céu, e explique isto a meus filhos e filhas, porque ajustaremos a máquina com o gabarito de Milton. Vocês, meus filhos, hão de convir que não podemos continuar com tantos defeitos de fabricação! A Terra está cansada e devastada por tais falhas, falhas que minam a ética, a decência, a paz e o convívio entre vocês. Aguardem novos Miltons, eles nascerão na Terra como fonte de luz, de paz, de dádiva divina. Enfim, como novas fontes, inesgotáveis, de serviço ao próximo. Faço isto, apesar da dor de vocês, como gesto de amor. Prometo, eu Pai Todo-Poderoso, devolver esse tão maravilhoso filho meu, Milton Marques de Medeiros, em forma de outros Miltons.

Pela glória de Cristo.

Assinado,

Deus Pai Todo Poderoso.

 

Levantei-me, pus os olhos no Oriente, e percebi uma estrelinha no céu; ela brilhava, Dona Zilene, sublime, mansa e discreta, sobre a nossa cidade.

Reconfortado, eu voltei ao leito e consegui dormir. Tive até um sonho. Nele, Dr. Milton sorria e me pedia para trazer, hoje a todos vocês, uma mensagem de fé e de es-pe-ran-ça.

E quanto a ti, Pai do Céu, nós, aqui nesta terra, vamos cobrar-Lhe o retorno dos outros Miltons que nos prometeste, ouviste bem?!

Por todos os séculos e séculos, amém.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]